Capítulo
2
A chuva batia na janela. Rafael
apenas observava sem curiosidade para a estrada com as pálpebras relaxadas. Finalmente
conseguiu relaxar, mesmo assim, não queria dormir. A preocupação com a bolsa
era maior do que qualquer sono e seus braços a apertavam contra o peito. O
ônibus estava subindo a serra de São Paulo em velocidade reduzida, graças à
chuva. Diversos letreiros na estrada pediam a diminuição da velocidade, além da
cautela. Virou a cabeça para o lado e observou a calmaria que estava dentro do
ônibus. A mulher já havia parado de falar no telefone e provavelmente havia
adormecido. Algumas luzes particulares das poltronas estavam ligadas no ônibus,
e ele pensou que as pessoas deveriam estar lendo ou algo do tipo. Virou
levemente a cabeça para trás e percebeu que havia uma luz ligada atrás dele.
Isso o incomodou um pouco. Era realmente uma mulher. Ruiva e muito branca,
estava lendo um livro clássico. “A
República – Platão”, murmurou ele.
Virou para frente e fez
um muxoxo. Será que ela estava de olho em sua bolsa? – o pensamento o fez
estremecer e ficar mais atento. Mas isso não durou muito, logo concluindo que a
mulher não era suspeita, nem ao menos parecia querer roubar o conteúdo de sua
bolsa. Ele decidiu fechar seus olhos por apenas alguns instantes. Algumas cenas da última noite estavam muito presente
em sua mente, gritos que talvez nunca fosse esquecer.
Uma mulher corria de
algo que não conseguia identificar. Arfava muito e estava quase ficando sem ar.
Ela corria para escuridão como buscasse segurança. Um disparo. Ela caiu. A bala
acertou em sua coxa direita. Agonizava segurando a perna. Um segundo sujeito
apareceu em cena. Segurava uma pistola calibre trinta e dois. Mancou calmamente
até ela. Ergueu a arma e disparou sem misericórdia.
Rafael despertou do
sonho. Suava muito e seu coração estava acelerado como se tivesse corrido uma
maratona inteira. A bolsa ainda estava em seu colo. Olhou pela janela
novamente. O ônibus estava parado e uma névoa fria pairava lá fora. Não conseguia
ver basicamente nada, mesmo forçando sua vista.
Algo se movimentava ao
lado de sua poltrona. Súbito virou a cabeça para enxergar a criança que se
balançava freneticamente. As luzes individuais das outras poltronas estavam
apagadas e quase não conseguia ver o rosto dela. Algo não estava certo, a
criança se movimentava de forma grotesca, flexionando a coluna para frente e
jogando para trás estalando todos os ossos numa sinfonia macabra. Sua pequena
cabeça estava virada para o corredor.
- Garota? – perguntou ele
quebrando o silêncio do ônibus – O que faz aqui? - A menina não respondeu nada.
O silêncio era de gelar a alma. Elevou um pouco a voz. – Você sabe falar, não
sabe? – nenhuma resposta. Perdeu a pouca paciência que lhe restava. Levou uma
mão ao ombro da criança e segurou com força.
- Escuta aqui, sua pirral...
– a voz não saiu. Não era possível o que via. A cabeça da criança virou para
trás mesmo seu tronco estando para frente. O som de ossos se partindo ressoou
por todo o ônibus. Seus globos oculares eram negros como a pior escuridão do
pior dos pesadelos. O rosto totalmente deformado. Ela o observava com um
sorriso maléfico e um líquido preto descia de sua bocarra cheia de dentes. O
cheiro de putrefação entrou nas narinas dele sem ao menos ser convidado,
fazendo que voltasse toda a comida que ainda tinha no estômago. Vomitou sobre a
bolsa e as costas da garota. Rafael sentiu a calça molhar. Ela gargalhou diabolicamente.
- Você vai queimar Rafael. – a voz era um guincho fino, como
se mil pássaros fossem esmagados ao mesmo tempo. – Arder, torrar, agoniar, por todos seus pecados. - Um pequeno facho de luz surgiu no início do ônibus.
Começaram gritos de tormenta por todo o ônibus. O clima de gelado se tornou
quente como se fosse uma grande fornalha. O ônibus pegava fogo e a garota
gargalhava cada vez mais. Ela virou seu tronco, se aproximou e fez um pequeno
corte com a unha no pulso esquerdo dele.
Gritos, gargalhadas e
chamas...
Ao longe, ouviu a voz
de uma mulher.
- Senhor? – ela segurava
seu pulso com força. – Acorde! Está tudo bem? – ele estava de olhos abertos e
tremia mais do que bambu ao vento. Despertou do transe.
- O que... O que
aconteceu? – a voz falhava e estava rouca. – Cadê a garota?
- Garota? – a ruiva o
observava. Usava uma camisa gola v branca Os cachos de seu cabelo foram muito
bem penteados. Havia uma jaqueta amarrada em sua cintura. Ela estava ao lado
dele parada e em pé. Seu tronco estava inclinado para perto dele, mostrando um
pouco de seu decote. Ele olhou disfarçadamente para os seios dela.
- Nós... estamos
parados? – perguntou desviando os olhos do decote provocativo. Secando o suor
de seu rosto com o antebraço esquerdo. A bolsa estava molhada de seu suor.
Sentiu nojo de si mesmo.
- Estamos na
rodoviária “Clube dos seiscentos”. Faz quase dez minutos que chegamos –
afastou-se dele e começou a andar em direção a saída. – Olha, eu preciso ir ao
banheiro. Você me acompanha?
- Até o banheiro
feminino? – ele confessou a si mesmo que o decote deixou-o um pouco excitado.
- Sim, não até lá
dentro. A não ser que você seja uma menina. – esboçou um sorriso simpático. – E
então, você vem?
- Ah... - Olhou para
própria camisa ensopada de suor. – Acho que preciso muito ir. – agarrou a
bolsa, levantou e foi em direção ao corredor. Tudo aquilo tinha sido muito real
para ele. A dor em seu pulso o alertava disso. “Foi apenas um sonho”, pensou. Mas o corte em seu pulso ainda
estava lá. A marca era real.
A marca da besta.
Nilson, o motorista,
enxugava o rosto com uma toalhinha que carregava em seu bolso. Acabava de lavar
seu sonolento rosto. O sono preocupava o motorista novato. Havia apenas dois
meses que ele tinha esse novo emprego, e já tinha um acidente nas costas.
Possuía uma fragilidade ao sono, então precisava lavar várias vezes o rosto e
tomar muito café. Deu pequenos tapas na cara
e olhou no espelho. Puxou um pequeno pente e começou a pentear os poucos fios
capilares que lhe restavam. As luzes do banheiro piscaram várias vezes, se
apagando no mesmo instante que alguém entrou no lugar. A porta se fechou e
Nilson ouviu a tranca do banheiro se fechar.
- Olá? – disse ele num
esforço para conter o medo. Sabemos que não importa a idade, todo ser humano
tem medo daquilo que não pode ver, e a escuridão só contribuía com isso. O
coração acelerou. – Tem alguém aí? Algo rastejava devagar para perto dele.
Segurou seu pé com força fazendo o gritar, mas era tarde demais para isso.
Gritos na escuridão e
o som de carne sendo fatiada.
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