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terça-feira, 1 de março de 2016

Um Espelho na Noite (Reescrito)


As gotículas de chuvas batiam na janela de meu quarto. Cada barulhinho me perturbava facilmente. Não havia sido um bom dia. Na verdade, nunca era um bom dia. Pergunto-me como as pessoas conseguem dar “bom dia” uma para as outras, sem ao menos saber se realmente será um bom dia ou um péssimo dia, como o meu. Trabalho numa pequena empresa no centro da cidade, sendo que para chegar até lá preciso pegar dois ônibus e um trecho de trem.
As gotas de chuva batiam na janela de meu quarto. Balancei a cabeça e cocei o queixo sob a barba espessa.
O engarrafamento de carros é sempre comum toda manhã e, com toda certeza, há algum acidente que acontece por imprudência desses malditos motoristas. Irritava-me o fato deles terem uma carteira de motorista e carros ou motos para dirigirem tranquilamente, sem ao menos se importarem com os horários de ônibus e trens. Havia uma conseqüência muito ruim se os perdesse.
As gotas de chuva batiam na janela de meu quarto. Ergui-me da cadeira, afastando da mesa do computador onde arrumava um erro na planilha financeira da empresa. Fui até a cozinha, pois precisava colocar um pouco de café na minha caneca da Peppa Pig. Deus, como eu odeio esse desenho.
Quando finalmente consigo chegar à empresa, enfrento um elevador cheio de pessoas, que assim como eu, estão totalmente mal-humoradas e insatisfeitas com suas vidas. Acabo sempre ficando no meio de todas elas ouvindo suas intermináveis fofocas e problemáticas sobre a vida. Meu cabelo, que tanto prezo por deixar bem arrumado, fica totalmente bagunçado com tantas pessoas se mexendo, entrando e saindo do elevador.
As gotas de chuva batiam na janela de meu quarto. Sento-me novamente na cadeira e levo á boca a caneca da maldita porquinha, com o líquido quente descendo garganta abaixo, fazendo-me sentir um arrepio na espinha. Sinto meu corpo esquentar.
Após entregar todos os relatórios de vendas semanais, meu chefe manda que pegue seu café e ai de mim se não estiver quente. Ele me dá cinco minutos para isso. Corro até a pequena cozinha do escritório, driblando os apertados corredores e as secretárias que adoram bajular as pessoas para conseguirem subir na vida. Dou de cara com uma fila de pessoas que, assim como eu, desejam seu tão esperado café. Após esperar exatos três minutos e vinte e dois segundos, ando o mais rápido possível de volta para a sala de meu chefe. Ao entregar para ele, leva o copo à enorme boca com seus dentes encavalados e mal escovados, despejando boa parte do líquido por goela abaixo. Abaixa o braço com o copo. As costas da mão esquerda servem como guardanapo. “Está horrível” – diz o desgraçado – “Da próxima vez desconto de seu salário” – sai de cena dando gargalhadas guturais.
As gotas de chuva batiam na janela de meu quarto. Abro outra planilha no Excel e vejo que algumas contas estão erradas. O Maldito usou a fórmula errada. Preciso de mais café. Engulo boa parte do líquido na caneca e nem me importo com sua quentura. Ainda resta um pouco.
Meu dia inteiro é fazer aquilo que meu chefe deveria fazer. Digito planilhas. Refaço cálculos errados. Trago mais café para sua boca miserável. Envio emails para outros diretores de outras empresas. Formulo negócios. Atravesso três quadras para encontrar o almoço que tanto deseja. Volto correndo para a empresa e quase sou atropelado por uns três ou quatro motociclistas. Ouço-o reclamar do pouco de salada que há no prato e no frango que está pouco grelhado. Sobram-me apenas seis minutos do meu horário de almoço para comer a pequena marmita que minha mulher fez. Ontem de tarde discutimos pelo celular. Ela queria que buscasse nossa filha na escola, mas eu não podia. Ela me xingou de vários nomes, mas ainda deixou a marmita pronta para que levasse nesse dia. Abri a tampa do pote retangular. Havia muita terra dentro e um bilhete. “Coma areia, seu bosta” – a maldita me pegou de jeito. Meu chefe gritou meu nome pedindo que fosse à sala dele. Passou apenas dois minutos. A ira me consumia por completo. Cerrei o punho. As unhas estalavam.
As gotas de chuva batiam na janela de meu quarto. O relógio batia meia noite e aquele som me perturbava ainda mais. Eu precisava dormir, afinal acordaria quatro e meia da manhã, entretanto, a planilha não estava completa. Minha cabeça latejava. Meus olhos estavam quase lacrimejando e piscavam de forma descompassada. O pescoço coçava. Preciso de café.
Ele brigava comigo. Dizia que minha atitude como seu ajudante estava totalmente desleixada, desde a temperatura de seu café, até os cálculos que refiz e ainda estavam errados. Aquele maldito. Aquele maldito miserável. Não conseguiu tirar o sorriso de sarcasmo e seus dentes encavalados com restos de alface e outras coisas, ao me dar aquele sermão.
As gotas de chuva batiam na janela de meu quarto. Minhas mãos tremiam. Os dedos estavam quase dormentes. Devo ir dormir, mas os malditos cálculos não estão completos. A planilha é para amanhã. Eu preciso de mais café. Mais café. Mais café.
O resto de meu dia foi apenas ser humilhado ainda mais e ouvir pequenos risinhos de outros funcionários. “Olha lá aquele otário” – dizia alguém. “O chefe faz ele de sapato” – diziam outros. “Ele não passa de um chiclete que a está debaixo de uma mesa. Ninguém se importa” – diziam outros bajuladores. A ira me consumia ainda mais.
As gotas de chuva batiam na maldita janela do meu quarto. Não posso prosseguir com isso. Esse barulho não passa. O ar começava a me faltar. Empalidecia cada vez mais. Bagunçava meu próprio cabelo com as mãos. Os olhos estão abrindo e fechando sem ter sentido algum. Eu preciso de ar. Eu preciso de ar. Malditos. São todos uns malditos. Eu preciso de ar. Não consigo respirar. Aqueles malditos.
Ele me mandou levar seu notebook para casa e terminar as duas últimas planilhas que faltavam. Minha filha tinha uma apresentação de Ballet e não pude ir. Minha mulher chegou em casa. Gritou mil e uma besteiras comigo, dizendo que não me amava mais. Minha filha gritava levando às mãos ao ouvido os tapando. Fez as malas. Pediu um Taxi. Ele chegou. Ela foi embora. Levou Joana consigo. Fiquei parado e ouvir tudo calado. Os olhos piscavam como nunca. O som estridente de Joana chorando ainda estava no vazio do meu ser.
As gotas de chuva batiam na maldita janela do meu quarto. A bateria do notebook acabou. Não salvei as planilhas. Tudo havia se perdido. Vozes falavam em minha cabeça. O café acabou. Peguei a caneca. Flexionei o tronco para frente. Gritei como uma besta em seu abate. Quebrei a caneca em minha cabeça. Gritei. Gritei. Gritei. Retirei o notebook de cima da mesa e o joguei no chão. Pisei em cima dele. Pisei. Pisei. Pisei. Pisei. Mais gritos. Arranhei minhas bochechas com as unhas. Esmurrei a parede. Esmurrei de novo. De novo. De novo. De novo. O sangue descia de meus punhos. Parei. O silêncio reinou. As gotas de chuva batiam na maldita janela do meu quarto. Virei o rosto em direção à janela. Abri a janela.
As gotas de chuva batiam no meu rosto agora deformado. Não havia ninguém na rua. Nenhuma pessoa decente andaria por aí uma hora dessas. Suguei todo o ar que pude. Ele não vinha para meus pulmões. Agonizei. Esbravejei. Gritei. Golpeei minha cabeça contra as grades da janela. Uma, duas, três, quatro. O sangue descia ainda mais de minha testa. O líquido escarlate e quente se misturava ao frio líquido que caía do céu sobre meu rosto.
As gotas de chuva batiam no meu rosto deformado ainda mais. Há um terreno baldio do lado de minha casa. Virei meu rosto e observei todo tipo de porcaria que tinha ali. Mato, restos de madeira, pneus furados, bolas de futebol de crianças, um carrinho de mão sem rodas, vassouras, monturos de areia e aquilo. O que é aquilo? Eu não sei. Você sabe? Não, mas está me olhando. O que é aquilo? Que forma grotesca é aquela. Com força bestial, entortei as grades e passei a cabeça para o lado de fora. As gotas de chuva batiam no meu rosto deformado ainda mais. Por que está me olhando? Quem é você?
As gotas de chuva batiam na minha cabeça que sangrava. O que é isso na sua cabeça? Chifres? Por que é tão feio? Por que não fala comigo? O que você quer afinal.
As gotas de chuva batiam nos chifres que brotavam sobre minha cabeça. Uma bocarra se abriu. Dentes pontiagudos apareceram. Olhos fundos e vermelhos. O rosto se transformava num vermelho quase vinho. A angústia tomou conta de mim. A criatura me olhava com uma fome voraz. Tentei puxar a cabeça de volta, mas como num passe de mágica, as barras que havia entortado, se prendiam em meu pescoço. O quarto pareceu encolher.
As gotas de chuva batiam nos meus chifres e desciam sobre minha bocarra, passando sobre meus olhos vermelhos e fundos. “O que você quer?” – indaguei. “Por que não fala comigo, sua fera dos infernos” – não havia respostas. O ar não entrava em minha boca ou narinas. Meu pulmão estava explodindo. Minha vida se esvaindo. Meu pescoço doía no meio das barras de ferro. Com minhas unhas eu arranhava a parede sujando-as de sangue. Preciso de ar. Quero ar. Por favor. Me ajude. Me ajude. Me ajude. “Me devore, me mate, mas faça essas vozes irem embora” – a garganta começava a doer.

A chuva parou e ouvi um forte relâmpago cruzar o céu. O terreno baldio foi clareado por alguns segundos. Vi o que a besta era. Apenas um espelho. A criatura sou eu. O que sou de verdade e muito mais do que isso. Aquilo que preciso fazer. O ar voltou aos meus pulmões. As barras haviam sumido. O sangue que jorrava também desapareceu. Olhei para dentro do quarto. O notebook estava ligado e sua bateria ainda estava na metade. Eu o desliguei. Coloquei em minha pasta. Desci até a cozinha com minha pasta e a caneca. Abri a pasta. Coloquei dentro um facão. Abri um grande sorriso. Nunca estive tão ansioso para o dia de amanhã na minha querida empresa. Mas, por agora, preciso de mais café. 

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