Ele
estava parado em minha frente. Não sei como, mas conseguira invadir minha casa.
Não me lembro de tê-lo convidado para nada. Sua presença era diabólica. Sua
aura era de puro ódio e ressentimento guardado dentro de si. Suas vestes,
negras como a noite. Não conseguia ver sua boca, mas ele tem orelhas altas e
pontudas. De alguma forma, molhei minha calça. É vergonhoso, eu sei, mas o medo
que entrava por entre cada poro de minha pele causou essa frouxidão na virilha.
- Onde ele está escondido? – sua voz parecia vir de algum
monstro de filme de terror, pois era grossa demais. Seus olhos negros estavam
postos sobre mim.
-
Já lhe contei a minha história? – argumentei. Ele ficou em silêncio.
Me
chamo Frank, mas meus amigos me chamam de Caolho. Bom, não são bem amigos, para
falar a verdade. Companheiros de trabalho, este termo é melhor. Este apelido
vem do fato de minha pálpebra do olho direito ser mais fechada que a do
esquerdo. Um pequeno erro de nascença. É claro que algo iria sair errado,
afinal de contas, minha mãe era uma prostituta. Dançava em bares todas as
noites e fazia sexo com caras em Motéis baratos. Logo você deve saber que sou
um bastardo. Pois é, nunca conheci meu pai. Talvez sejam múltiplos pais, já que
mesmo grávida, ela daria para qualquer um que pudesse lhe dar um bom trocado. A desgraçada morreu quando eu tinha seis anos,
graças a um belo câncer pulmonar. Muito obrigado, cigarro. Morei nas ruas de
Gotham, já que não conhecia nenhum parente que me ajudasse a pelo menos me
alimentar. Roubar pequenos biscoitos e outras besteiras de mercados. Era muito
fácil. Essa foi minha vida até os quinze anos. Nessa idade, comecei a roubar
carros e vendê-los.
As
noites de Gotham eram sempre iguais. Frias e chuvosas. O cheiro pútrido de
violência, lascívia e corrupção faziam parte do cotidiano. Ninguém ficava
impune, desde empresários magnatas a velhos moradores de rua bêbados. Viva em
Gotham City e com certeza você terá de conviver com isso. Certo dia, encontrei
uma limusine belíssima que estava estacionada em frente a uma boate de luxo,
umas das poucas que existem nessa merda de cidade. Sua cor era deveras
diferente, sendo metade preta e metade branca. Não havia outra oportunidade
melhor de subir na vida do que roubá-la e vender por um bom preço.
Foi
o que fiz. Esgueirei-me por entre os carros que estavam estacionados perto do
local e, com um pé de cabra enferrujado e meio torto, consegui entrar no
veículo. Fiz uma ligação direta rapidamente. Era notável que meu coração estava
mais do que aflito. Aquele carro era de alguém grande. Não tinha essa sabedoria
na época.
Atravessei
no meio de toda Gotham com aquele carro. Era incrível sua velocidade. Por
apenas alguns minutos, me senti como um magnata. Conseguia sorrir e gargalhar,
como uma criança com seu brinquedo novo. Levei a limusine para o contato que
comprava os meus objetos furtados.
A
expressão de horror do homem quando viu o carro era inominável. Suas rugas de
expressão se contraíram de forma horrenda. A boca se abriu, revelando alguns
dentes podres e obturações pretas. O cigarro caiu no chão molhado. A mão abria
e se fechava descontroladamente.
-
M-Ma... – as palavras lhe fugiam – Mas que bosta é essa?
-
Isso é um carro, oras? – respondi – Um dos bens grandes. Vai lhe render uma boa
gra...
-
Seu idiota, estúpido. – deu passos pesados em minha direção. As poças d’água
batiam em sua bota desgastada. Estendeu os braços e segurou meus ombros com
extrema força – Leve isso de volta para o lugar que encontrou, sua besta. Vai
matar a nós dois.
-
Do que você está falando, cara? – nunca havia visto tamanho pavor num homem
daquela idade – Olha. – busquei argumentar – é só me dar o dinheiro e vai ficar
tudo bem.
-
Dinheiro?! – gritou ele. As gotas de chuva molhavam sua jaqueta jeans. Ergueu o
braço para trás e golpeou-me com força no rosto, com as costas da mão. O tapa
fora tão forte que caí sobre a perna direita, indo direto em cima de uma poça
enorme. Minha única calça jeans agora estava enlameada. Olhei para o velho com
horror, não era a primeira vez que apanhara na vida. Não, claro que não. O que
me espantava era o horror do homem. O coração acelerou. A raiva batia às portas
do desespero. Senti aquele gosto azedo do sangue em minha boca. Não há outro
gosto no mundo igual ao sangue. Ele vem sem ser convidado, entra e não pede
licença.
-
Que diabos há de errado com você, seu velho gagá?! – exclamei com todo ar que
tinha nos pulmões. Todos os membros de meu corpo tremiam freneticamente.
-
Você sabe de quem é esse carro? – segurou a gola de minha camisa puxando para
cima, forçando-me a ficar de pé.
-
De algum chefe de Máfia, eu suponho.
-
Não, seu novato imbecil. Esse carro pertence ao Duas-Caras! – me puxou para
mais próximo de seu rosto. Seu hálito tinha cheiro de sanduíche de anchovas e
rum. Meus olhos se arregalaram, as pernas ficaram bambas, relaxei de tal forma
que senti minha calça se molhar com urina. O coração batia muito forte, quase
dava para ouvi-lo palpitar. Os dedos do pé se contorciam. Os pelos do corpo
todo se eriçaram. As palavras não conseguiam ser formadas. Todo mundo em Gotham,
sabe quem é o Duas-Caras. Antes um advogado dedicado, chamado Harvey Dent. Após
um terrível acidente, metade de seu rosto foi queimado e ficou em carne viva. A
morte de sua esposa ocorreu pela deficiência da polícia de Gotham em fazer a
coisa certa. Harvey nunca esqueceu, seu trauma foi demasiadamente grande,
ocasionando um distúrbio mental e criando uma dupla personalidade. Desde então,
o ex-advogado vem cometendo sérios crimes, inclusive alguns extremamente ruins.
-
Escute aqui e escute bem. – o homem agora sussurrava perto de meu rosto - Você
vai entrar dentro deste carro e vai se mandar daqui agora.
-
Po-Por... Por f-favor, me ajude – foi apenas o que consegui dizer, lágrimas
quentes caíam em meio à gélida chuva. Segurei os pulsos do homem com força –
Você precisa me ajudar. – gritei.
Outro
tapa veio sem ser convidado, mas, dessa vez, meu corpo se manteve rígido e em
pé. Cuspi um pouco de sangue e toda comida que havia em meu estômago, fora
regurgitada. Vomitei ali mesmo, aos pés do comprador de objetos e coisas
furtadas. Não consegui olhar para seu rosto, graças ao inclino do meu tronco,
mas tenho certeza que seu rosto demonstrava medo, nojo e desaprovação.
Não
houve muito tempo para demonstrar qualquer tipo de reação, pois, subitamente,
três carros entraram no local abandonado, ferindo dezenas de meliantes que eram
serviçais do comprador. Tiros de diferentes armas. Joguei-me no chão sem ter
como reagir. Chorava feito uma criança, levando as mãos e tampando os ouvidos
em meio a tantos barulhos.
O
comprador se jogou no chão, para sua infelicidade, em cima de meu vômito.
Proferiu milhões de palavrões. Não conseguia ouvir quase nada, mas algumas
palavras ficaram em minha cabeça até hoje. “A gente já era, a gente já era”,
gritava o velho em desespero. Era certeza que morreria naquele dia, mas não foi
bem assim.
Os
tiros cessaram. Os carros pararam de se mover. Vários capangas desceram de seus
carros e nos cercaram. Dentre eles, havia uma limusine preta que estava parada
um pouco atrás. Sua porta se abriu e um sujeito bem diferente desceu do carro.
Vestia
um terno estranho, metade branco e metade preto com algumas fuligens e meio
desgastado. A parte branca estava impecável, com um lenço vermelho sobre o
bolso. O rosto era a coisa mais grotesca que vi em toda minha vida. Metade de
seu rosto caucasiano estava totalmente destruída. A carne estava queimada e
desgastada. As bordas do olho estavam vermelhas e bem dilatadas, além de não
existir a pálpebra. Os lábios superiores e inferiores estavam mastigados. A
arcada dentária estava à mostra. Pústulas rodeavam esse lado do rosto. Pequenas
e grandes, não importa, eram muitas. Seu andar era arrogante, pois demorou
alguns segundos para chegar até nós. Trazia consigo uma bengala de cor preta e
uma moeda de cinquenta centavo, que jogava para cima com extrema cautela. O
homem olhou para nós dois que estávamos no chão. O comprador respirava muito
forte, mostrando pequenos ruídos ao final.
-
Ora, ora, ora, o que temos aqui. – disse o homem de duas caras. Passou pelos
seus guarda-costas que estavam mirando em nós dois com armas automáticas – Dois
ratinhos assustados que pensam que podem roubar e vender meu carro favorito com
tanta facilidade e...
-Harvey!
– Duas-Caras fora interrompido. O velho comprador resolveu falar e sua voz
soava de forma nervosa e descontrolada – Olha, cara. Não fui eu. Foi ele, foi
ele. Esse desgraçado nem te conhece direito e já sai roubando suas coisas. Por
favor, Harvey, tenha misericórdia. - O rosto do mafioso se escureceu em meio às
trevas que a noite proporciona. O brilho de seus dentes amarelos era a única
coisa que conseguia enxergar. Seu peito se estufou e sua respiração acelerou.
Ele se aproximou do velho jogado no chão.
-
Você que chamou do quê? – a voz, outrora um ruído estranho e fino, se tornara
numa voz grossa e imponente.
-P-Pe..P-..Perd...
– em meio ao gaguejar, o homem de duas caras agachou-se no chão, cerrou seu
punho e o socou no nariz. Uma. Duas. Três. Quatro. Dez vezes sem parar. Seu
nariz, outrora grande, estava totalmente quebrado e em carne viva. Ele
gorgolejava sangue e seus olhos não conseguiam se abrir direito. Harvey Dent
espumava uma saliva avermelhada, que passava por entre seus dentes amarelos e
disformes, descendo pelo queixo e caindo em seu fino traje de duas cores.
Lágrimas de sangue desciam pelo rosto do velho, que se esforçava apenas para
respirar e manter a consciência. Senti muita pena naquele momento, mas o medo e
a certeza da morte eram maiores do que tudo.
-
Nunca... – exclamava Harvey Dent cerrando os dentes uns nos outros - Nunca me
chame desse nome...
Levantou-se,
chutou o queixo do comprador com o bico do sapato. Ouvi o barulho do osso se
deslocar. Pisou com força no abdome e o levantou. Em pé e sem ar, ele buscou
resistência de seus músculos da perna, mas não foi atendido. Caiu de joelhos,
segurando o abdome, enquanto o sangue manchava o chão. Duas-Caras o olhou com
nojo. Girou o tronco e chutou a têmpora direita. O homem tombou desnorteado e
sem rumo.
Duas-Caras
tomou fôlego.
-
Eu já havia lhe dito, Jack. – esse era o nome do comprador – Não deveria ter
tocado em minhas coisas. Jack ainda sem fôlego algum, fazendo uma força para
permanecer são, tentava formar palavras e criar frases, mas apenas ouvia ruídos
estranhos.
-
Não tem nada a dizer? – Duas-Caras aproximou seu rosto do moribundo, mas nada
ouviu – Bem, deixe que eu veja seu destino. – retirou uma moeda do bolso –
Cara, você morre rapidamente. Coroa, vou lhe sedar com morfina ou qualquer
outra droga que tiver, assim cortarei cada pedaço do seu corpo imundo e darei para
meus cães. Sabe, eles vivem com muita fome.
Sorriu.
O músculo queimado foi repuxado em meio ao sorriso torto e aberto na lateral.
Ele jogou a moeda para cima. O tempo parecia haver parado. Divaguei. Diversos
homens vestidos formalmente não passavam de capangas para Harvey Dent. O
ex-advogado agora não passava de uma figura sombria e psicopata, que decidia o
destino de suas vítimas baseado no resultado de uma brincadeira tão boba, como
Cara e Coroa. O que mais me perturbava, era o sorriso maléfico do homem. Seu
prazer em matar era notável. Pensei em tudo que havia feito até aquele momento.
O irônico da sociedade é: temos frases e jargões para exemplificar casos e
causos do ser humano. “A justiça sempre prevalece”, essa é uma de muitas frases
que são utilizadas para dizer que a justiça sempre ganha no final. Onde está a
justiça agora? “Servir e proteger”, é a frase mais dita por policiais que
aparecem em canais abertos na televisão, mas onde estão esses “protetores”
agora? Por que fazemos promessas que não conseguimos cumprir? Acho que posso
afirmar. Ainda que esses policiais se empenhassem em proteger Gotham City, nós
não aceitaríamos isso. Não existe justiça em Gotham, apenas corrupção, crimes,
tristezas, mortes, esse é o ar que respiramos. Pisamos em poças de sangue todos
os dias e não reclamamos. Em cada esquina da cidade há mendigos passando fome e
mendigos usando droga, mas ninguém liga. Justiça aqui em Gotham é a mesma coisa
que mitologia grega, ou seja, não existe, nem nunca existiu. Com apenas vinte
anos de idade, eu consegui ver tudo isso de perto. As tristezas de cada um. A
falta de importância que as pessoas dão para tudo. O engraçado de tudo isso, é
que todos os seres humanos tenham um pouco de Frankenstein, pois criam seres
para que possam odiá-los e chamá-los de erro. Gotham City cria bandidos,
mafiosos e toda sorte de lixo, para assim, poder odiar e repudiar.
A
moeda girou no ar e caiu na palma da mão. Ele fechou o punho e colocou a moeda
em cima das costas da mão contrária. Soltou uma risada baixa e retirou a mão de
cima. O sorriso se fechou e, novamente, seu rosto se escureceu. Virou as costas
e se dirigiu para o capanga mais próximo, retirando a pistola de sua mão. Girou
o tronco, mirou na cabeça do comprador e disparou. Uma. Duas. Três vezes. A
vida o abandonou. O sangue foi derramado por todo o chão.
-
Meus cachorros vão continuar com fome. – estava desapontado.
Sou
o próximo.
Duas-Caras
andou em minha direção. Seu rosto não indicava raiva, seu olhar não tinha
aquele fogo assassino que observei enquanto batia no velho. Parecia algo mais
parecido com curiosidade, do que vontade de matar. Eu estava deitado com a
barriga no chão. Um dos capangas dele pisava em minhas costas para me manter no
chão. Duas-Caras ficou de cócoras, o capanga retirou o pé, ele apertou meu
pescoço com a mão e me fez levantar para que assim, pudesse olhar dentro de
meus olhos. Sentia sua respiração quente em meu rosto. O hálito não era dos
melhores. Me analisou por alguns minutos, como se quisesse descobrir como
equalizar as cores do cubo mágico
-
Não é possível... – agora sorria de maneira nervosa, talvez sarcástica – Não é
possível que um pirralho feito você, tenha conseguido roubar o carro que eu
mais gosto. – ao dizer essas palavras, pude sentir meu sangue gelar. Engoli em
seco. Talvez meu sangue tenha parado de ser bombeado. Senti leves estalos nas
veias e dores abdominais. O carro que ele mais gostava. Agora era certo. Eu
iria morrer.
-
Diga-me, pequeno gatuno. – ele continuava – Como um ladrãozinho pé de chinelo
feito você, conseguiu roubar um carro tão icônico quanto o meu, sem ser visto
por dezenas de capangas extremamente armados, cujo único maldito trabalho, era
cuidar do carro? – ele apontou com a outra mão para todos os capangas ao redor.
As
palavras não vinham. Mesmo sabendo que tinha uma tentativa de me redimir, não
conseguia formular frases em meio ao terror.
-
Vamos, garoto. – balançou meu corpo – Eu não tenho a noite toda, além de estar
com um mau-humor terrível. – puxou a pistola que havia colocado dentro do
paletó e colou o cano meio quente em minha têmpora direita. Meu olhar
acompanhou o cano e o suor começou a descer mais rapidamente – Diga! – gritou.
-E-Eu...Eu...
só... – “vou morrer”, pensava.
-
Cinco, quatro... – ele começou a contar.
-É...Eu..
– “vou morrer, vou morrer, vou morrer”, a dor de cabeça era lancinante.
-
Três, dois, um... – destravou a arma.
-
A CULPA PERTENCE AOS SEUS CAPANGAS INUTEIS – gritei de olhos fechados –
CONSEGUI ME ESGUEIRAR POR ENTRE TANTOS CARROS, ABRI A PORTA, FIZ A MALDITA
LIGAÇÃO DIRETA E SAÍ COM O CARRO, SEM AO MENOS SER VISTO POR ESSES IMBECIS.
Silêncio.
O
coração batia forte. A respiração estava pesada.
Nunca
em toda minha vida esperava gritar com um mafioso, muito menos com o Duas-Caras.
Eu conseguia ver um pouco de seu rosto, mesmo ele estando contra a luz. Não
havia emoções nem nada parecido com isso. A boca estava fechada e aberta na
outra lateral. Ele parecia não respirar. Seus olhos estavam esbugalhados, não
de surpresa, pois nem ao menos piscava. As gotas da chuva desciam por sobre seu
rosto. Ele abriu a boca, ameaçou dizer algo, mas voltou a fechar. Empurrou-me
contra o chão. Caí de bunda no chão molhado, pude observá-lo puxar a pistola e
apontar para o meu rosto. Ia fechar meus olhos, mas antes disso, pude vê-lo
jogar ao ar a moeda novamente, em silêncio. A moeda caiu e ele fez o mesmo
ritual. Fechei meus olhos ao ouvir o estralo da arma destravando. O medo se
esvaiu quando disse todas aquelas verdades. Esse era o fim.
Bang. Vários
tiros em sequência. Havia um intervalo de um segundo para cada bala que era
disparada. A orquestra dos sons mortais era apreciada por mim, sua vítima.
Talvez o medo houvesse cauterizado meus nervos, pois não sentia exatamente nada
sendo rompido, nem nada parecido com isso. Talvez esse deveria ser mesmo o
melhor para o mundo, afinal, quem sentiria falta de um vagabundo , ladrãozinho
pé-de-chinelo, filho de uma prostituta.
Doze
disparos, eu consegui contar. Meus dentes rangiam devido ao nervoso, o suor
descia por meu pescoço abaixo e já não sabia diferenciar se estava molhado de
chuva e mijo, ou se meu sangue tinha vazando tanto assim. Algo pesado caiu.
Decidi que jogar meu tronco para trás era a melhor estratégia para morrer logo
e não levar mais nenhum tiro gratuito.
- Levante-se, garoto. – ele tornou a
falar – Sua vida agora me pertence. – abri meus olhos e nunca pensei que veria
tudo aquilo. Doze dos vários capangas que haviam entrado no local, estavam
caídos no chão, inertes. Não havia outra explicação, todos os tiros que foram
disparados não haviam me acertado, mas sim, todos aqueles homens.
- Você é surdo, garoto. – Duas-Caras
mudou a entonação de voz, deixando-a mais grossa e firme – Mandei você se
levantar.
- Por que? – foi tudo que consegui
dizer em meio a tamanho massacre – Por que matou seus capangas ao invés de me
matar?
- Achou mesmo que eu iria querer
esses capangas inúteis depois de ter deixado um ladrão de rua feito você,
roubar meu carro mais precioso, bem debaixo dos olhos deles? – coçou o queixo e
guardou a arma dentro paletó de duas cores. A arma estava descarregada – Bons
capangas são difíceis de encontrar por aí, sabe? Você procura, procura, procura
e sempre acha os mesmos tipos. São todos uns medrosos. Dizem por aí que tem
medo do meu rosto. Me diga, garoto, há algo de errado com meu rosto? - É claro
que havia, metade do rosto do homem estava totalmente queimado, sem pálpebra ou
cabelo, só o músculo queimado.
-N-Não, senhor. – engoli em seco,
era uma mentira. Ele olhou dentro de meus olhos, se virou e andou na direção do
carro que roubei.
- Você agora me pertence. – afirmou
como se tomasse algo para si – Será um dos meus capangas e eu irei treiná-lo
para ser um servo “bom e fiel”. Algo contra isso? – o olho sem pálpebra e meio
avermelhado me observou por sobre o ombro.
- Não, senhor. – é claro que não
iria negar – Serei seu melhor capanga.
- Bom... – a partir daquele
instante, minha vida melhorou, da pior maneira possível.
O Duas-Caras é um criminoso e tanto,
tráfico de drogas e armas são apenas umas das coisas em que é versátil, seu rol
de crimes são bem piores. Fiquei responsável pela parte de contrabandear armas
nas docas e trabalhei nisso por muitos anos. Até que algum maluco metido à
vigilante decidiu limpar Gotham da criminalidade. Diziam que usava um traje de
morcego. Um completo idiota.
No começo, eu pensava que esse
vigilante imbecil não iria sobreviver, afinal de contas, não existe só o
Duas-Caras como “Rei do Crime”, há o Pinguim, um mafioso baixinho e gordo que
andava estranho, mas seu poderio em Gotham era demasiadamente grande, assim
como de muitos outros. Entretanto, ele não morreu e nem desistiu de Gotham.
Isso era preocupante.
Esse tal vigilante estava limpando a
cidade, mas algo estava mudando e não era para melhor. O índice de criminalidade
só aumentava. Com a chegada desse mascarado, outros criminosos começaram a
aderir a máscaras e codinomes malucos. Charada, Dr. Hugo Strange,
Homem-Calendário, Victor Zsasz, Bane, Hera Venenosa, Pistoleiro, Chapeleiro
Maluco, todos esses caras começaram a surgir. Mas havia um sujeito que todos
tinham medo de verdade. Um pavor que se acendia em todos os moradores de Gotham
City, não apenas nos bonzinhos, se é que existe alguém assim aqui, mas também
os maiores criminosos, mafiosos e contrabandistas.
- O Coringa. – disse certa vez um
dos meus capangas, podia chamá-lo assim porque já estava comandando alguns
grupos isolados do chefe – Ele se esconde nas sombras. Tortura pessoas por
prazer. Seu sorriso e insanidade não têm fim, o chefe precisa ter cuidado com
esse cara. Ele não é normal.
- Dizem que ele apareceu apenas por
causa do mascarado. – outros diziam – Dizem que ele apenas quer brincar, e sua
brincadeira envolve a morte de muitas pessoas. Sem contar na cidade toda
pegando fogo.
O coringa era uma lenda entre todos
os criminosos da cidade. Um medo que a própria cidade produziu. Tinha vinte
oito anos quando o Duas-Caras convocou uma reunião com todos seus “imediatos”.
Eu era um deles na época. Nosso armazém ficava na parte sul de Gotham, onde
pertencia aos mendigos e toda sorte de bandidos. O armazém estava abandonado,
com teias de aranha, buracos por todos os lugares do teto. Cachorros se
abrigavam ali dentro para se esconderem do frio.
Era inverno em Gotham, e como
sempre, o frio vinha causando muitos problemas nas docas. Não havia como navios
saírem do local, pois o mar estava quase congelado, seria muito arriscado. Não
fazia sentido colocar milhares de armamentos e drogas dentro de um navio e
afundá-lo logo em seguida. O inverno era sempre mais duro para nossos lucros.
Após tantos anos trabalhando na ilegalidade, você começa a nutrir certo
respeito e paixão por aquilo que faz. Eu já administrava quatro grupos, com
cinquenta homens ao todo. Com o Duas-Caras, minha vida avançou em níveis que
nunca imaginei. Morava num bom apartamento, com a geladeira sempre cheia e a
lareira acesa para esquentar os pés. Tinha até um roupão ridículo que todo rico
besta tem.
Estávamos sentados aguardando o
chefe. Ele que precisava nos dizer o que estava acontecendo. Reuniões em meio
ao inverno nunca eram normais. Havia algo de errado e isso estava me deixando
louco. Já conseguia enxergar Harvey Dent como meu amigo, mesmo não sendo nada
assim. Um amigo psicopata que te paga para contrabandear coisas e matar homens
que davam problemas.
Sentados na longa mesa da sala do
subsolo no armazém, havia mais três homens junto comigo. Cada um cuidava de uma
parte da cidade, afinal de contas, Gotham é muito grande. A segurança e
negociações das docas era meu dever. A produção de toda sorte de drogas e a
segurança dos lugares que as produziam, pertencia a John. A importação de armas
ou equipamentos que as faziam, de Philip. Os subornos e auxilio da polícia de
Gotham, de Oak.
- Ele está demorando. – resmungou
Oak – Nunca vi o chefe demorar tanto assim!
- Caaaalma. – enfatizou John, que
era o mais calmo de todos – O chefe deve ter pegado um trânsito e já já
aparece. Hoje é véspera daquela festa lá, não é? Natal.
- Ninguém merece o Natal – Philip girava
uma pequena faca por entre os dedos da mão direita. Seu gênio extremista e totalmente
radical, não ajudava muito nas negociações. “Philip” era seu apelido, seu nome
eu desconheço até hoje. Sei que era russo, mas é só – As pessoas ficam
enfeitando árvores como se fossem importantes para alguma coisa. Os moradores
dessa cidade de merda, que não se importam com nada que não seja suas próprias
bundas, se importarem com um homem que nasceu a sei lá quantos anos atrás. Qual
o nome dele mesmo? Buda?
- Jesus, cara. – me pronunciei em
meio a tanta burrice – Como você pode ser um brutamonte tão ignorante?
- Pelo menos sou um brutamonte, e
você que nem braço tem direito! – todos riram. Éramos muito diferentes, mas nos
divertíamos muito. A família que não tive quando mais novo, havia ganhado
agora. Se as coisas que fizéssemos não fossem tão ruins, diria que foi algum
tipo de deus que providenciou isso para mim. Ficamos sentados, conversando por
mais de uma hora e nada do chefe aparecer. Em meio a tantas conversas e
assuntos aleatórios, um silêncio se formou, como um medo crescente em cada um.
- Chega! – disse John retirando uma
arma do bolso – Ele nunca se atrasou para uma reunião.
- Guarda essa arma, John. – Oak
respondeu em tom de ordem – Sempre há uma primeira vez para tudo.
- Não pense que manda em alguma
coisa aqui. – argumentou Philip – Eu acho que devíamos... – súbito, ouvimos
barulhos de tiros sendo disparados lá de fora. Não havia apenas nós quatro ali,
mas também muitos dos capangas do chefe. Talvez os melhores. Os gritos de
várias pessoas ressoavam em meio a dezenas de tiros de diferentes armas.
- Mas que bosta está acontecendo
aqui? – resolvi tirar a arma e me levantar, mas para nossa surpresa, a porta se
abriu num tranco muito forte. Era um de meus capangas. A boca estava
escancarada e parecia apenas sugar o ar, sem expeli-lo. Sua falta de cabelo na
parte frontal da cabeça estava cheia de sangue, assim como sua camisa laranja,
com gola pólo branca. O peito estufado. As mãos trêmulas. Os ombros arqueados e
meio tortos. A parte direita de seu rosto estava machucada por alguma razão. Os
olhos mais abertos do que nunca. A pupila dilatada.
- Chefe! – ele se referia a mim,
quase não conseguindo falar. Correu para dentro da sala e se ajoelhou aos meus
pés me segurando com força – Ele está aqui, chefe. Ele existe, ele existe. Por
favor, me ajude. Ele vai me pegar. Por favor. Por favor. Por favor...
- Solte-me, homem! – gritei, Oak,
John e Philip preparavam suas armas para sair da sala – O que está acontecendo
lá fora?! – mais e mais tiros eram ouvidos, junto com toda a sorte de gritos.
Mais de cem homens dentro daquele enorme armazém abandonado. Só poderia ter
entrado um exército altamente armado.
- Ele vai nos pegar, ele vai nos
matar! – o homem chorava como uma criancinha. Ouvi meus amigos xingarem dezenas
de palavrões e sentirem medo de sair porta afora. Quatro dos capangas mais
perigosos do Duas-Caras não conseguiam sair do local por causa de um mero
exército. Bem, era o que eu pensava, mas era pior que qualquer exército.
Resolvi gritar ainda mais alto com o
homem.
- O que diabos está causando tudo
isso? – só minha voz foi ouvida em meio ao silêncio que se formou subitamente.
Todos olharam para mim e tremeram. John largou a arma no chão e caiu sentado.
Philip queria apontar a arma, mostrando toda sua virilidade russa, mas não
conseguia erguer os braços. Oak começou a ranger os dentes enquanto forçava
suas pernas a se manterem em pé. Havia algo...
- Q-Qu..Que d-d-d...Deu...s nos
a-a-a-a-a..jude... – disse meu capanga por fim.
- Deus não está aqui... Eu estou...
O
arrepio
começou em minha última espinha. O medo era genuíno e diferente de qualquer
outro que já senti. Nem quando quase morri baleado pelo chefe senti tanto medo.
Não. Esse era algo muito diferente. Ele se igualava ao medo de quando se é
criança e sente que algo pode agarrar seu pé vindo debaixo da cama ou do
armário. Ou quando você está quase dormindo e sente seu corpo extremamente
paralisado entre o mundo dos sonhos e o mundo real, onde vê dezenas de vultos
passando ao seu redor, dançando uma valsa macabra e perversa. Girei a cabeça
para o lado, tentando ver o que havia atrás de mim, mas os ossos, músculos e
órgãos de todo meu corpo, pareciam não funcionar mais. Mesmo girando a cabeça
para o lado, o movimento saiu devagar. Bem devagar. Muito devagar. Ele estava
ali... Imerso nas trevas, e as trevas o preenchiam. As asas do
morcego se abriram emitindo um vento que chegou a balançar meu cabelo de um
lado para o outro, enquanto as pupilas se dilatavam ao máximo. Golpeou-me na
têmpora direita com velocidade. Lembro-me de ver meus amigos puxando suas armas
e atirando as cegas contra a escuridão, mas ele continuava avançando. As poucas
luzes que tinham na sala piscavam de um canto para outro. O morcego dançava
magistralmente em meio ao terror.
Tudo
estava tão embaçado e eu já não entendia mais nada do que se passava. Fechei os
olhos e desmaiei. Seu golpe fora tão forte que não consegui mover um membro de
meu corpo. Não, não era por isso. Foi o medo que impôs sobre mim. O medo que
impôs sobre todos nós, isso fez com que Philip não atirasse de primeira. Como
um homem, ou sabe-se lá o que aquilo era, pode colocar medo em homens que já
haviam visto o pior da vida, o pior de Gotham City. O sonho pareceu durar anos.
Revi minha mãe, coisa que não fazia há muito tempo. As vezes que levava seu “trabalho”
para casa. Olhava-me no espelho, onde tentava levantar minha pálpebra caída,
que quase cobria meu olho. Mas as luzes do banheiro se apagaram. Uma luz
avermelhada surgiu em meio às trevas. O morcego apareceu atrás de mim
novamente. Sua aparência era mais demoníaca ainda. Suas asas se abriram e se
fecharam ao meu redor. A bocarra mordia meu pescoço com vontade, arrancando a
pele, músculo e tudo o que tinha direito. Gritei, esperneei, mas de nada
adiantava. Senti que molhava minha calça.
Abri
meus olhos, como se despertasse de um pesadelo que perdurou anos. Mas algo estava
errado, meu corpo todo estava coberto por neve e, para piorar, estava todo
amarrado com uma corda de aço preta. Ela prendia meus pés junto com minhas
mãos, que por sua vez, estava presa em minhas costas. Senti uma forte dor de
cabeça. O mundo girava. Para piorar, estava preso em frente à delegacia de
polícia de Gotham City, não apenas eu, mas todos os cento e cinquenta capangas
do Duas-Caras. Espalhados pela rua e calçada, todos bem presos e amordaçados. O
prédio da delegacia era enorme, com pilastras gregas desgastadas em sua frente.
Queria
gritar, correr, sair dali o mais rápido que pudesse, mas não era possível. O
morcego nos pegou de jeito. Poucos minutos depois, vários dos policiais mais
medrosos de Gotham saíram de dentro da toca e nos levaram para dentro. Fui
preso e condenado por dezenas de coisas que nem lembro. Soube que Philip e
muitos outros capangas foram trancafiados no asilo Arkham. Aquele lugar era
amaldiçoado. Meu chefe, o Duas-Caras, não tinha sido encontrado. Passei dez
anos da minha vida dentro de uma prisão, comendo da pior comida do mundo e
riscando paredes, contando o tempo que estava ali.
Qualquer
um teria ficado louco com as coisas que vi ali, mas eu não. Meu objetivo era
apenas um, enfrentar meu medo e matar o morcego. Tentei várias vezes fugir da
prisão, mas foram todas em vão. Os guardas me batiam com porretes e toda sorte
de apetrechos para acalmar pessoas como eu. Alguns dos outros prisioneiros, que
eram mais fortes e influentes ali dentro, me violentaram por dezenas de noites.
Não somente eles, mas alguns guardas. Entravam em minha sela pela noite e faziam
o serviço. Por muito tempo eu tentei ir contra, mas uma hora você desiste de
tudo. Qualquer um teria ficado louco, mas eu não. Qualquer um teria ficado
louco, mas eu não. Eu sou muito forte para ficar louco, hahahaha, eu sou muito
forte. Não vou ficar louco nunca hahahahaha.
- Você já disse isso várias vezes, agora me diga. – se aproximou de meu rosto,
passando a mão por trás da minha cabeça e puxando meu cabelo com força para
trás– Onde está o Duas-Caras?
-
Já lhe contei como saí da cadeia? – sentado na cadeira, cuspindo sangue e sem
sentir algumas partes de meu corpo, ainda tinha a capacidade de falar. O terror
e medo que sentia por ele haviam sumido.
- Você não saiu da cadeia, Frank Caolho! – sua voz continuava rouca,
grossa e intimidadora como sempre – Nunca esteve nela.
-
Como assim nunca estive na cadeia? – soltei pequenas risadas nervosas. Engoli
em seco antes de falar novamente – Aqui é minha casa, depois de dez anos preso
naquela maldita cadeia eu, eu, eu saí. Aqui é minha casa. Você está louco. Aqui
é minha casa. Minha casa. Aqui sempre foi.
- Não se passaram nem dois meses que prendi você. – isso não
pode ser verdade – Você não está na cadeia.
Girei
a cabeça para todos os lados, tentei erguer o braço, mas estava envolto por uma
camisa branca que me segurava por completo. A sala toda era preta, cheia de
vidros e apenas uma pequena luz que vinha do alto. Onde é que estou? O que faço
aqui? Cadê meu chefe? Minha mamãe? Onde estou?
-
Você – indaguei, comecei a salivar pelas laterais da boca – Onde é que estou? O
que você quer de mim? Por que me trouxe para cá? Onde, onde, onde, onde é que,
que é, que, o que é que, eu, é...
- Frank –
tornou a dizer – Você está no asilo Arkham há exatos dois meses. Não houve dez anos em
prisão alguma. Você está no tratamento intensivo a todo esse tempo. Agora
preciso que me diga, onde está o Duas-Caras?
-
Não, não é, hahaha, não, o louco é você hahahahahaha, você é o doido daqui
hahahahahahahahahahahahahahaha – tornei a me debater, chorar e salivar muito. Os
olhos giravam por toda a órbita. Ele me olhava por entre as trevas, com
desgosto. Parei. A risada parou. A mente ficou branca e calma. Tornei a olhar
em seus negros olhos, mas não por muito tempo, pois ele balançou a cabeça e
virou suas costas. Abriu uma porta e pude ver sua forma. Era apenas um homem.
Um homem vestido de preto, com uma fantasia de carnaval.
-
Quem é você? – segurei o riso frouxo. Olhou por sobre o ombro.
- Eu sou o Batman.
- Já lhe
contei a minha história, Batman?