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terça-feira, 29 de março de 2016

Pesadelo em Gotham City



Ele estava parado em minha frente. Não sei como, mas conseguira invadir minha casa. Não me lembro de tê-lo convidado para nada. Sua presença era diabólica. Sua aura era de puro ódio e ressentimento guardado dentro de si. Suas vestes, negras como a noite. Não conseguia ver sua boca, mas ele tem orelhas altas e pontudas. De alguma forma, molhei minha calça. É vergonhoso, eu sei, mas o medo que entrava por entre cada poro de minha pele causou essa frouxidão na virilha.
- Onde ele está escondido?sua voz parecia vir de algum monstro de filme de terror, pois era grossa demais. Seus olhos negros estavam postos sobre mim.
- Já lhe contei a minha história? – argumentei. Ele ficou em silêncio.
Me chamo Frank, mas meus amigos me chamam de Caolho. Bom, não são bem amigos, para falar a verdade. Companheiros de trabalho, este termo é melhor. Este apelido vem do fato de minha pálpebra do olho direito ser mais fechada que a do esquerdo. Um pequeno erro de nascença. É claro que algo iria sair errado, afinal de contas, minha mãe era uma prostituta. Dançava em bares todas as noites e fazia sexo com caras em Motéis baratos. Logo você deve saber que sou um bastardo. Pois é, nunca conheci meu pai. Talvez sejam múltiplos pais, já que mesmo grávida, ela daria para qualquer um que pudesse lhe dar um bom trocado.  A desgraçada morreu quando eu tinha seis anos, graças a um belo câncer pulmonar. Muito obrigado, cigarro. Morei nas ruas de Gotham, já que não conhecia nenhum parente que me ajudasse a pelo menos me alimentar. Roubar pequenos biscoitos e outras besteiras de mercados. Era muito fácil. Essa foi minha vida até os quinze anos. Nessa idade, comecei a roubar carros e vendê-los.
As noites de Gotham eram sempre iguais. Frias e chuvosas. O cheiro pútrido de violência, lascívia e corrupção faziam parte do cotidiano. Ninguém ficava impune, desde empresários magnatas a velhos moradores de rua bêbados. Viva em Gotham City e com certeza você terá de conviver com isso. Certo dia, encontrei uma limusine belíssima que estava estacionada em frente a uma boate de luxo, umas das poucas que existem nessa merda de cidade. Sua cor era deveras diferente, sendo metade preta e metade branca. Não havia outra oportunidade melhor de subir na vida do que roubá-la e vender por um bom preço.
Foi o que fiz. Esgueirei-me por entre os carros que estavam estacionados perto do local e, com um pé de cabra enferrujado e meio torto, consegui entrar no veículo. Fiz uma ligação direta rapidamente. Era notável que meu coração estava mais do que aflito. Aquele carro era de alguém grande. Não tinha essa sabedoria na época.
Atravessei no meio de toda Gotham com aquele carro. Era incrível sua velocidade. Por apenas alguns minutos, me senti como um magnata. Conseguia sorrir e gargalhar, como uma criança com seu brinquedo novo. Levei a limusine para o contato que comprava os meus objetos furtados.
A expressão de horror do homem quando viu o carro era inominável. Suas rugas de expressão se contraíram de forma horrenda. A boca se abriu, revelando alguns dentes podres e obturações pretas. O cigarro caiu no chão molhado. A mão abria e se fechava descontroladamente.
- M-Ma... – as palavras lhe fugiam – Mas que bosta é essa?
- Isso é um carro, oras? – respondi – Um dos bens grandes. Vai lhe render uma boa gra...
- Seu idiota, estúpido. – deu passos pesados em minha direção. As poças d’água batiam em sua bota desgastada. Estendeu os braços e segurou meus ombros com extrema força – Leve isso de volta para o lugar que encontrou, sua besta. Vai matar a nós dois. 
- Do que você está falando, cara? – nunca havia visto tamanho pavor num homem daquela idade – Olha. – busquei argumentar – é só me dar o dinheiro e vai ficar tudo bem.
- Dinheiro?! – gritou ele. As gotas de chuva molhavam sua jaqueta jeans. Ergueu o braço para trás e golpeou-me com força no rosto, com as costas da mão. O tapa fora tão forte que caí sobre a perna direita, indo direto em cima de uma poça enorme. Minha única calça jeans agora estava enlameada. Olhei para o velho com horror, não era a primeira vez que apanhara na vida. Não, claro que não. O que me espantava era o horror do homem. O coração acelerou. A raiva batia às portas do desespero. Senti aquele gosto azedo do sangue em minha boca. Não há outro gosto no mundo igual ao sangue. Ele vem sem ser convidado, entra e não pede licença. 
- Que diabos há de errado com você, seu velho gagá?! – exclamei com todo ar que tinha nos pulmões. Todos os membros de meu corpo tremiam freneticamente.
- Você sabe de quem é esse carro? – segurou a gola de minha camisa puxando para cima, forçando-me a ficar de pé.
- De algum chefe de Máfia, eu suponho.
- Não, seu novato imbecil. Esse carro pertence ao Duas-Caras! – me puxou para mais próximo de seu rosto. Seu hálito tinha cheiro de sanduíche de anchovas e rum. Meus olhos se arregalaram, as pernas ficaram bambas, relaxei de tal forma que senti minha calça se molhar com urina. O coração batia muito forte, quase dava para ouvi-lo palpitar. Os dedos do pé se contorciam. Os pelos do corpo todo se eriçaram. As palavras não conseguiam ser formadas. Todo mundo em Gotham, sabe quem é o Duas-Caras. Antes um advogado dedicado, chamado Harvey Dent. Após um terrível acidente, metade de seu rosto foi queimado e ficou em carne viva. A morte de sua esposa ocorreu pela deficiência da polícia de Gotham em fazer a coisa certa. Harvey nunca esqueceu, seu trauma foi demasiadamente grande, ocasionando um distúrbio mental e criando uma dupla personalidade. Desde então, o ex-advogado vem cometendo sérios crimes, inclusive alguns extremamente ruins.
- Escute aqui e escute bem. – o homem agora sussurrava perto de meu rosto - Você vai entrar dentro deste carro e vai se mandar daqui agora.
- Po-Por... Por f-favor, me ajude – foi apenas o que consegui dizer, lágrimas quentes caíam em meio à gélida chuva. Segurei os pulsos do homem com força – Você precisa me ajudar. – gritei.
Outro tapa veio sem ser convidado, mas, dessa vez, meu corpo se manteve rígido e em pé. Cuspi um pouco de sangue e toda comida que havia em meu estômago, fora regurgitada. Vomitei ali mesmo, aos pés do comprador de objetos e coisas furtadas. Não consegui olhar para seu rosto, graças ao inclino do meu tronco, mas tenho certeza que seu rosto demonstrava medo, nojo e desaprovação.
Não houve muito tempo para demonstrar qualquer tipo de reação, pois, subitamente, três carros entraram no local abandonado, ferindo dezenas de meliantes que eram serviçais do comprador. Tiros de diferentes armas. Joguei-me no chão sem ter como reagir. Chorava feito uma criança, levando as mãos e tampando os ouvidos em meio a tantos barulhos.
O comprador se jogou no chão, para sua infelicidade, em cima de meu vômito. Proferiu milhões de palavrões. Não conseguia ouvir quase nada, mas algumas palavras ficaram em minha cabeça até hoje. “A gente já era, a gente já era”, gritava o velho em desespero. Era certeza que morreria naquele dia, mas não foi bem assim.
Os tiros cessaram. Os carros pararam de se mover. Vários capangas desceram de seus carros e nos cercaram. Dentre eles, havia uma limusine preta que estava parada um pouco atrás. Sua porta se abriu e um sujeito bem diferente desceu do carro.
Vestia um terno estranho, metade branco e metade preto com algumas fuligens e meio desgastado. A parte branca estava impecável, com um lenço vermelho sobre o bolso. O rosto era a coisa mais grotesca que vi em toda minha vida. Metade de seu rosto caucasiano estava totalmente destruída. A carne estava queimada e desgastada. As bordas do olho estavam vermelhas e bem dilatadas, além de não existir a pálpebra. Os lábios superiores e inferiores estavam mastigados. A arcada dentária estava à mostra. Pústulas rodeavam esse lado do rosto. Pequenas e grandes, não importa, eram muitas. Seu andar era arrogante, pois demorou alguns segundos para chegar até nós. Trazia consigo uma bengala de cor preta e uma moeda de cinquenta centavo, que jogava para cima com extrema cautela. O homem olhou para nós dois que estávamos no chão. O comprador respirava muito forte, mostrando pequenos ruídos ao final.
- Ora, ora, ora, o que temos aqui. – disse o homem de duas caras. Passou pelos seus guarda-costas que estavam mirando em nós dois com armas automáticas – Dois ratinhos assustados que pensam que podem roubar e vender meu carro favorito com tanta facilidade e...
-Harvey! – Duas-Caras fora interrompido. O velho comprador resolveu falar e sua voz soava de forma nervosa e descontrolada – Olha, cara. Não fui eu. Foi ele, foi ele. Esse desgraçado nem te conhece direito e já sai roubando suas coisas. Por favor, Harvey, tenha misericórdia. - O rosto do mafioso se escureceu em meio às trevas que a noite proporciona. O brilho de seus dentes amarelos era a única coisa que conseguia enxergar. Seu peito se estufou e sua respiração acelerou. Ele se aproximou do velho jogado no chão.
- Você que chamou do quê? – a voz, outrora um ruído estranho e fino, se tornara numa voz grossa e imponente.
-P-Pe..P-..Perd... – em meio ao gaguejar, o homem de duas caras agachou-se no chão, cerrou seu punho e o socou no nariz. Uma. Duas. Três. Quatro. Dez vezes sem parar. Seu nariz, outrora grande, estava totalmente quebrado e em carne viva. Ele gorgolejava sangue e seus olhos não conseguiam se abrir direito. Harvey Dent espumava uma saliva avermelhada, que passava por entre seus dentes amarelos e disformes, descendo pelo queixo e caindo em seu fino traje de duas cores. Lágrimas de sangue desciam pelo rosto do velho, que se esforçava apenas para respirar e manter a consciência. Senti muita pena naquele momento, mas o medo e a certeza da morte eram maiores do que tudo.
- Nunca... – exclamava Harvey Dent cerrando os dentes uns nos outros - Nunca me chame desse nome...
Levantou-se, chutou o queixo do comprador com o bico do sapato. Ouvi o barulho do osso se deslocar. Pisou com força no abdome e o levantou. Em pé e sem ar, ele buscou resistência de seus músculos da perna, mas não foi atendido. Caiu de joelhos, segurando o abdome, enquanto o sangue manchava o chão. Duas-Caras o olhou com nojo. Girou o tronco e chutou a têmpora direita. O homem tombou desnorteado e sem rumo.
Duas-Caras tomou fôlego.
- Eu já havia lhe dito, Jack. – esse era o nome do comprador – Não deveria ter tocado em minhas coisas. Jack ainda sem fôlego algum, fazendo uma força para permanecer são, tentava formar palavras e criar frases, mas apenas ouvia ruídos estranhos.
- Não tem nada a dizer? – Duas-Caras aproximou seu rosto do moribundo, mas nada ouviu – Bem, deixe que eu veja seu destino. – retirou uma moeda do bolso – Cara, você morre rapidamente. Coroa, vou lhe sedar com morfina ou qualquer outra droga que tiver, assim cortarei cada pedaço do seu corpo imundo e darei para meus cães. Sabe, eles vivem com muita fome.
Sorriu. O músculo queimado foi repuxado em meio ao sorriso torto e aberto na lateral. Ele jogou a moeda para cima. O tempo parecia haver parado. Divaguei. Diversos homens vestidos formalmente não passavam de capangas para Harvey Dent. O ex-advogado agora não passava de uma figura sombria e psicopata, que decidia o destino de suas vítimas baseado no resultado de uma brincadeira tão boba, como Cara e Coroa. O que mais me perturbava, era o sorriso maléfico do homem. Seu prazer em matar era notável. Pensei em tudo que havia feito até aquele momento. O irônico da sociedade é: temos frases e jargões para exemplificar casos e causos do ser humano. “A justiça sempre prevalece”, essa é uma de muitas frases que são utilizadas para dizer que a justiça sempre ganha no final. Onde está a justiça agora? “Servir e proteger”, é a frase mais dita por policiais que aparecem em canais abertos na televisão, mas onde estão esses “protetores” agora? Por que fazemos promessas que não conseguimos cumprir? Acho que posso afirmar. Ainda que esses policiais se empenhassem em proteger Gotham City, nós não aceitaríamos isso. Não existe justiça em Gotham, apenas corrupção, crimes, tristezas, mortes, esse é o ar que respiramos. Pisamos em poças de sangue todos os dias e não reclamamos. Em cada esquina da cidade há mendigos passando fome e mendigos usando droga, mas ninguém liga. Justiça aqui em Gotham é a mesma coisa que mitologia grega, ou seja, não existe, nem nunca existiu. Com apenas vinte anos de idade, eu consegui ver tudo isso de perto. As tristezas de cada um. A falta de importância que as pessoas dão para tudo. O engraçado de tudo isso, é que todos os seres humanos tenham um pouco de Frankenstein, pois criam seres para que possam odiá-los e chamá-los de erro. Gotham City cria bandidos, mafiosos e toda sorte de lixo, para assim, poder odiar e repudiar.
A moeda girou no ar e caiu na palma da mão. Ele fechou o punho e colocou a moeda em cima das costas da mão contrária. Soltou uma risada baixa e retirou a mão de cima. O sorriso se fechou e, novamente, seu rosto se escureceu. Virou as costas e se dirigiu para o capanga mais próximo, retirando a pistola de sua mão. Girou o tronco, mirou na cabeça do comprador e disparou. Uma. Duas. Três vezes. A vida o abandonou. O sangue foi derramado por todo o chão.
- Meus cachorros vão continuar com fome. – estava desapontado.
Sou o próximo.
Duas-Caras andou em minha direção. Seu rosto não indicava raiva, seu olhar não tinha aquele fogo assassino que observei enquanto batia no velho. Parecia algo mais parecido com curiosidade, do que vontade de matar. Eu estava deitado com a barriga no chão. Um dos capangas dele pisava em minhas costas para me manter no chão. Duas-Caras ficou de cócoras, o capanga retirou o pé, ele apertou meu pescoço com a mão e me fez levantar para que assim, pudesse olhar dentro de meus olhos. Sentia sua respiração quente em meu rosto. O hálito não era dos melhores. Me analisou por alguns minutos, como se quisesse descobrir como equalizar as cores do cubo mágico
- Não é possível... – agora sorria de maneira nervosa, talvez sarcástica – Não é possível que um pirralho feito você, tenha conseguido roubar o carro que eu mais gosto. – ao dizer essas palavras, pude sentir meu sangue gelar. Engoli em seco. Talvez meu sangue tenha parado de ser bombeado. Senti leves estalos nas veias e dores abdominais. O carro que ele mais gostava. Agora era certo. Eu iria morrer.
- Diga-me, pequeno gatuno. – ele continuava – Como um ladrãozinho pé de chinelo feito você, conseguiu roubar um carro tão icônico quanto o meu, sem ser visto por dezenas de capangas extremamente armados, cujo único maldito trabalho, era cuidar do carro? – ele apontou com a outra mão para todos os capangas ao redor.
As palavras não vinham. Mesmo sabendo que tinha uma tentativa de me redimir, não conseguia formular frases em meio ao terror.
- Vamos, garoto. – balançou meu corpo – Eu não tenho a noite toda, além de estar com um mau-humor terrível. – puxou a pistola que havia colocado dentro do paletó e colou o cano meio quente em minha têmpora direita. Meu olhar acompanhou o cano e o suor começou a descer mais rapidamente – Diga! – gritou.
-E-Eu...Eu... só... – “vou morrer”, pensava.
- Cinco, quatro... – ele começou a contar.
-É...Eu.. – “vou morrer, vou morrer, vou morrer”, a dor de cabeça era lancinante.
- Três, dois, um... – destravou a arma.
- A CULPA PERTENCE AOS SEUS CAPANGAS INUTEIS – gritei de olhos fechados – CONSEGUI ME ESGUEIRAR POR ENTRE TANTOS CARROS, ABRI A PORTA, FIZ A MALDITA LIGAÇÃO DIRETA E SAÍ COM O CARRO, SEM AO MENOS SER VISTO POR ESSES IMBECIS.
Silêncio.
O coração batia forte. A respiração estava pesada.
Nunca em toda minha vida esperava gritar com um mafioso, muito menos com o Duas-Caras. Eu conseguia ver um pouco de seu rosto, mesmo ele estando contra a luz. Não havia emoções nem nada parecido com isso. A boca estava fechada e aberta na outra lateral. Ele parecia não respirar. Seus olhos estavam esbugalhados, não de surpresa, pois nem ao menos piscava. As gotas da chuva desciam por sobre seu rosto. Ele abriu a boca, ameaçou dizer algo, mas voltou a fechar. Empurrou-me contra o chão. Caí de bunda no chão molhado, pude observá-lo puxar a pistola e apontar para o meu rosto. Ia fechar meus olhos, mas antes disso, pude vê-lo jogar ao ar a moeda novamente, em silêncio. A moeda caiu e ele fez o mesmo ritual. Fechei meus olhos ao ouvir o estralo da arma destravando. O medo se esvaiu quando disse todas aquelas verdades. Esse era o fim.
Bang. Vários tiros em sequência. Havia um intervalo de um segundo para cada bala que era disparada. A orquestra dos sons mortais era apreciada por mim, sua vítima. Talvez o medo houvesse cauterizado meus nervos, pois não sentia exatamente nada sendo rompido, nem nada parecido com isso. Talvez esse deveria ser mesmo o melhor para o mundo, afinal, quem sentiria falta de um vagabundo , ladrãozinho pé-de-chinelo, filho de uma prostituta.
Doze disparos, eu consegui contar. Meus dentes rangiam devido ao nervoso, o suor descia por meu pescoço abaixo e já não sabia diferenciar se estava molhado de chuva e mijo, ou se meu sangue tinha vazando tanto assim. Algo pesado caiu. Decidi que jogar meu tronco para trás era a melhor estratégia para morrer logo e não levar mais nenhum tiro gratuito.
            - Levante-se, garoto. – ele tornou a falar – Sua vida agora me pertence. – abri meus olhos e nunca pensei que veria tudo aquilo. Doze dos vários capangas que haviam entrado no local, estavam caídos no chão, inertes. Não havia outra explicação, todos os tiros que foram disparados não haviam me acertado, mas sim, todos aqueles homens.
            - Você é surdo, garoto. – Duas-Caras mudou a entonação de voz, deixando-a mais grossa e firme – Mandei você se levantar.
            - Por que? – foi tudo que consegui dizer em meio a tamanho massacre – Por que matou seus capangas ao invés de me matar?
            - Achou mesmo que eu iria querer esses capangas inúteis depois de ter deixado um ladrão de rua feito você, roubar meu carro mais precioso, bem debaixo dos olhos deles? – coçou o queixo e guardou a arma dentro paletó de duas cores. A arma estava descarregada – Bons capangas são difíceis de encontrar por aí, sabe? Você procura, procura, procura e sempre acha os mesmos tipos. São todos uns medrosos. Dizem por aí que tem medo do meu rosto. Me diga, garoto, há algo de errado com meu rosto? - É claro que havia, metade do rosto do homem estava totalmente queimado, sem pálpebra ou cabelo, só o músculo queimado.
            -N-Não, senhor. – engoli em seco, era uma mentira. Ele olhou dentro de meus olhos, se virou e andou na direção do carro que roubei.
            - Você agora me pertence. – afirmou como se tomasse algo para si – Será um dos meus capangas e eu irei treiná-lo para ser um servo “bom e fiel”. Algo contra isso? – o olho sem pálpebra e meio avermelhado me observou por sobre o ombro.
            - Não, senhor. – é claro que não iria negar – Serei seu melhor capanga.
            - Bom... – a partir daquele instante, minha vida melhorou, da pior maneira possível.
            O Duas-Caras é um criminoso e tanto, tráfico de drogas e armas são apenas umas das coisas em que é versátil, seu rol de crimes são bem piores. Fiquei responsável pela parte de contrabandear armas nas docas e trabalhei nisso por muitos anos. Até que algum maluco metido à vigilante decidiu limpar Gotham da criminalidade. Diziam que usava um traje de morcego. Um completo idiota.
            No começo, eu pensava que esse vigilante imbecil não iria sobreviver, afinal de contas, não existe só o Duas-Caras como “Rei do Crime”, há o Pinguim, um mafioso baixinho e gordo que andava estranho, mas seu poderio em Gotham era demasiadamente grande, assim como de muitos outros. Entretanto, ele não morreu e nem desistiu de Gotham. Isso era preocupante.
            Esse tal vigilante estava limpando a cidade, mas algo estava mudando e não era para melhor. O índice de criminalidade só aumentava. Com a chegada desse mascarado, outros criminosos começaram a aderir a máscaras e codinomes malucos. Charada, Dr. Hugo Strange, Homem-Calendário, Victor Zsasz, Bane, Hera Venenosa, Pistoleiro, Chapeleiro Maluco, todos esses caras começaram a surgir. Mas havia um sujeito que todos tinham medo de verdade. Um pavor que se acendia em todos os moradores de Gotham City, não apenas nos bonzinhos, se é que existe alguém assim aqui, mas também os maiores criminosos, mafiosos e contrabandistas.
            - O Coringa. – disse certa vez um dos meus capangas, podia chamá-lo assim porque já estava comandando alguns grupos isolados do chefe – Ele se esconde nas sombras. Tortura pessoas por prazer. Seu sorriso e insanidade não têm fim, o chefe precisa ter cuidado com esse cara. Ele não é normal.
            - Dizem que ele apareceu apenas por causa do mascarado. – outros diziam – Dizem que ele apenas quer brincar, e sua brincadeira envolve a morte de muitas pessoas. Sem contar na cidade toda pegando fogo.
            O coringa era uma lenda entre todos os criminosos da cidade. Um medo que a própria cidade produziu. Tinha vinte oito anos quando o Duas-Caras convocou uma reunião com todos seus “imediatos”. Eu era um deles na época. Nosso armazém ficava na parte sul de Gotham, onde pertencia aos mendigos e toda sorte de bandidos. O armazém estava abandonado, com teias de aranha, buracos por todos os lugares do teto. Cachorros se abrigavam ali dentro para se esconderem do frio.
            Era inverno em Gotham, e como sempre, o frio vinha causando muitos problemas nas docas. Não havia como navios saírem do local, pois o mar estava quase congelado, seria muito arriscado. Não fazia sentido colocar milhares de armamentos e drogas dentro de um navio e afundá-lo logo em seguida. O inverno era sempre mais duro para nossos lucros. Após tantos anos trabalhando na ilegalidade, você começa a nutrir certo respeito e paixão por aquilo que faz. Eu já administrava quatro grupos, com cinquenta homens ao todo. Com o Duas-Caras, minha vida avançou em níveis que nunca imaginei. Morava num bom apartamento, com a geladeira sempre cheia e a lareira acesa para esquentar os pés. Tinha até um roupão ridículo que todo rico besta tem.
            Estávamos sentados aguardando o chefe. Ele que precisava nos dizer o que estava acontecendo. Reuniões em meio ao inverno nunca eram normais. Havia algo de errado e isso estava me deixando louco. Já conseguia enxergar Harvey Dent como meu amigo, mesmo não sendo nada assim. Um amigo psicopata que te paga para contrabandear coisas e matar homens que davam problemas.
            Sentados na longa mesa da sala do subsolo no armazém, havia mais três homens junto comigo. Cada um cuidava de uma parte da cidade, afinal de contas, Gotham é muito grande. A segurança e negociações das docas era meu dever. A produção de toda sorte de drogas e a segurança dos lugares que as produziam, pertencia a John. A importação de armas ou equipamentos que as faziam, de Philip. Os subornos e auxilio da polícia de Gotham, de Oak.
            - Ele está demorando. – resmungou Oak – Nunca vi o chefe demorar tanto assim!
            - Caaaalma. – enfatizou John, que era o mais calmo de todos – O chefe deve ter pegado um trânsito e já já aparece. Hoje é véspera daquela festa lá, não é? Natal.
            - Ninguém merece o Natal – Philip girava uma pequena faca por entre os dedos da mão direita. Seu gênio extremista e totalmente radical, não ajudava muito nas negociações. “Philip” era seu apelido, seu nome eu desconheço até hoje. Sei que era russo, mas é só – As pessoas ficam enfeitando árvores como se fossem importantes para alguma coisa. Os moradores dessa cidade de merda, que não se importam com nada que não seja suas próprias bundas, se importarem com um homem que nasceu a sei lá quantos anos atrás. Qual o nome dele mesmo? Buda?
            - Jesus, cara. – me pronunciei em meio a tanta burrice – Como você pode ser um brutamonte tão ignorante?
            - Pelo menos sou um brutamonte, e você que nem braço tem direito! – todos riram. Éramos muito diferentes, mas nos divertíamos muito. A família que não tive quando mais novo, havia ganhado agora. Se as coisas que fizéssemos não fossem tão ruins, diria que foi algum tipo de deus que providenciou isso para mim. Ficamos sentados, conversando por mais de uma hora e nada do chefe aparecer. Em meio a tantas conversas e assuntos aleatórios, um silêncio se formou, como um medo crescente em cada um.
            - Chega! – disse John retirando uma arma do bolso – Ele nunca se atrasou para uma reunião.
            - Guarda essa arma, John. – Oak respondeu em tom de ordem – Sempre há uma primeira vez para tudo.
            - Não pense que manda em alguma coisa aqui. – argumentou Philip – Eu acho que devíamos... – súbito, ouvimos barulhos de tiros sendo disparados lá de fora. Não havia apenas nós quatro ali, mas também muitos dos capangas do chefe. Talvez os melhores. Os gritos de várias pessoas ressoavam em meio a dezenas de tiros de diferentes armas.
            - Mas que bosta está acontecendo aqui? – resolvi tirar a arma e me levantar, mas para nossa surpresa, a porta se abriu num tranco muito forte. Era um de meus capangas. A boca estava escancarada e parecia apenas sugar o ar, sem expeli-lo. Sua falta de cabelo na parte frontal da cabeça estava cheia de sangue, assim como sua camisa laranja, com gola pólo branca. O peito estufado. As mãos trêmulas. Os ombros arqueados e meio tortos. A parte direita de seu rosto estava machucada por alguma razão. Os olhos mais abertos do que nunca. A pupila dilatada.
            - Chefe! – ele se referia a mim, quase não conseguindo falar. Correu para dentro da sala e se ajoelhou aos meus pés me segurando com força – Ele está aqui, chefe. Ele existe, ele existe. Por favor, me ajude. Ele vai me pegar. Por favor. Por favor. Por favor...
            - Solte-me, homem! – gritei, Oak, John e Philip preparavam suas armas para sair da sala – O que está acontecendo lá fora?! – mais e mais tiros eram ouvidos, junto com toda a sorte de gritos. Mais de cem homens dentro daquele enorme armazém abandonado. Só poderia ter entrado um exército altamente armado.
            - Ele vai nos pegar, ele vai nos matar! – o homem chorava como uma criancinha. Ouvi meus amigos xingarem dezenas de palavrões e sentirem medo de sair porta afora. Quatro dos capangas mais perigosos do Duas-Caras não conseguiam sair do local por causa de um mero exército. Bem, era o que eu pensava, mas era pior que qualquer exército.
            Resolvi gritar ainda mais alto com o homem.
            - O que diabos está causando tudo isso? – só minha voz foi ouvida em meio ao silêncio que se formou subitamente. Todos olharam para mim e tremeram. John largou a arma no chão e caiu sentado. Philip queria apontar a arma, mostrando toda sua virilidade russa, mas não conseguia erguer os braços. Oak começou a ranger os dentes enquanto forçava suas pernas a se manterem em pé. Havia algo...
            - Q-Qu..Que d-d-d...Deu...s nos a-a-a-a-a..jude... – disse meu capanga por fim.
              - Deus não está aqui... Eu estou...
   O arrepio começou em minha última espinha. O medo era genuíno e diferente de qualquer outro que já senti. Nem quando quase morri baleado pelo chefe senti tanto medo. Não. Esse era algo muito diferente. Ele se igualava ao medo de quando se é criança e sente que algo pode agarrar seu pé vindo debaixo da cama ou do armário. Ou quando você está quase dormindo e sente seu corpo extremamente paralisado entre o mundo dos sonhos e o mundo real, onde vê dezenas de vultos passando ao seu redor, dançando uma valsa macabra e perversa. Girei a cabeça para o lado, tentando ver o que havia atrás de mim, mas os ossos, músculos e órgãos de todo meu corpo, pareciam não funcionar mais. Mesmo girando a cabeça para o lado, o movimento saiu devagar. Bem devagar. Muito devagar. Ele estava ali... Imerso nas trevas, e as trevas o preenchiam. As asas do morcego se abriram emitindo um vento que chegou a balançar meu cabelo de um lado para o outro, enquanto as pupilas se dilatavam ao máximo. Golpeou-me na têmpora direita com velocidade. Lembro-me de ver meus amigos puxando suas armas e atirando as cegas contra a escuridão, mas ele continuava avançando. As poucas luzes que tinham na sala piscavam de um canto para outro. O morcego dançava magistralmente em meio ao terror.
Tudo estava tão embaçado e eu já não entendia mais nada do que se passava. Fechei os olhos e desmaiei. Seu golpe fora tão forte que não consegui mover um membro de meu corpo. Não, não era por isso. Foi o medo que impôs sobre mim. O medo que impôs sobre todos nós, isso fez com que Philip não atirasse de primeira. Como um homem, ou sabe-se lá o que aquilo era, pode colocar medo em homens que já haviam visto o pior da vida, o pior de Gotham City. O sonho pareceu durar anos. Revi minha mãe, coisa que não fazia há muito tempo. As vezes que levava seu “trabalho” para casa. Olhava-me no espelho, onde tentava levantar minha pálpebra caída, que quase cobria meu olho. Mas as luzes do banheiro se apagaram. Uma luz avermelhada surgiu em meio às trevas. O morcego apareceu atrás de mim novamente. Sua aparência era mais demoníaca ainda. Suas asas se abriram e se fecharam ao meu redor. A bocarra mordia meu pescoço com vontade, arrancando a pele, músculo e tudo o que tinha direito. Gritei, esperneei, mas de nada adiantava. Senti que molhava minha calça.
Abri meus olhos, como se despertasse de um pesadelo que perdurou anos. Mas algo estava errado, meu corpo todo estava coberto por neve e, para piorar, estava todo amarrado com uma corda de aço preta. Ela prendia meus pés junto com minhas mãos, que por sua vez, estava presa em minhas costas. Senti uma forte dor de cabeça. O mundo girava. Para piorar, estava preso em frente à delegacia de polícia de Gotham City, não apenas eu, mas todos os cento e cinquenta capangas do Duas-Caras. Espalhados pela rua e calçada, todos bem presos e amordaçados. O prédio da delegacia era enorme, com pilastras gregas desgastadas em sua frente.
Queria gritar, correr, sair dali o mais rápido que pudesse, mas não era possível. O morcego nos pegou de jeito. Poucos minutos depois, vários dos policiais mais medrosos de Gotham saíram de dentro da toca e nos levaram para dentro. Fui preso e condenado por dezenas de coisas que nem lembro. Soube que Philip e muitos outros capangas foram trancafiados no asilo Arkham. Aquele lugar era amaldiçoado. Meu chefe, o Duas-Caras, não tinha sido encontrado. Passei dez anos da minha vida dentro de uma prisão, comendo da pior comida do mundo e riscando paredes, contando o tempo que estava ali.
Qualquer um teria ficado louco com as coisas que vi ali, mas eu não. Meu objetivo era apenas um, enfrentar meu medo e matar o morcego. Tentei várias vezes fugir da prisão, mas foram todas em vão. Os guardas me batiam com porretes e toda sorte de apetrechos para acalmar pessoas como eu. Alguns dos outros prisioneiros, que eram mais fortes e influentes ali dentro, me violentaram por dezenas de noites. Não somente eles, mas alguns guardas. Entravam em minha sela pela noite e faziam o serviço. Por muito tempo eu tentei ir contra, mas uma hora você desiste de tudo. Qualquer um teria ficado louco, mas eu não. Qualquer um teria ficado louco, mas eu não. Eu sou muito forte para ficar louco, hahahaha, eu sou muito forte. Não vou ficar louco nunca hahahahaha.
- Você já disse isso várias vezes, agora me diga.se aproximou de meu rosto, passando a mão por trás da minha cabeça e puxando meu cabelo com força para trás– Onde está o Duas-Caras?
- Já lhe contei como saí da cadeia? – sentado na cadeira, cuspindo sangue e sem sentir algumas partes de meu corpo, ainda tinha a capacidade de falar. O terror e medo que sentia por ele haviam sumido.
- Você não saiu da cadeia, Frank Caolho!sua voz continuava rouca, grossa e intimidadora como sempre – Nunca esteve nela.
- Como assim nunca estive na cadeia? – soltei pequenas risadas nervosas. Engoli em seco antes de falar novamente – Aqui é minha casa, depois de dez anos preso naquela maldita cadeia eu, eu, eu saí. Aqui é minha casa. Você está louco. Aqui é minha casa. Minha casa. Aqui sempre foi.
- Não se passaram nem dois meses que prendi você. – isso não pode ser verdade – Você não está na cadeia.
Girei a cabeça para todos os lados, tentei erguer o braço, mas estava envolto por uma camisa branca que me segurava por completo. A sala toda era preta, cheia de vidros e apenas uma pequena luz que vinha do alto. Onde é que estou? O que faço aqui? Cadê meu chefe? Minha mamãe? Onde estou?
- Você – indaguei, comecei a salivar pelas laterais da boca – Onde é que estou? O que você quer de mim? Por que me trouxe para cá? Onde, onde, onde, onde é que, que é, que, o que é que, eu, é...
- Frank – tornou a dizer Você está no asilo Arkham há exatos dois meses. Não houve dez anos em prisão alguma. Você está no tratamento intensivo a todo esse tempo. Agora preciso que me diga, onde está o Duas-Caras?
- Não, não é, hahaha, não, o louco é você hahahahahaha, você é o doido daqui hahahahahahahahahahahahahahaha – tornei a me debater, chorar e salivar muito. Os olhos giravam por toda a órbita. Ele me olhava por entre as trevas, com desgosto. Parei. A risada parou. A mente ficou branca e calma. Tornei a olhar em seus negros olhos, mas não por muito tempo, pois ele balançou a cabeça e virou suas costas. Abriu uma porta e pude ver sua forma. Era apenas um homem. Um homem vestido de preto, com uma fantasia de carnaval.
- Quem é você? – segurei o riso frouxo. Olhou por sobre o ombro.
- Eu sou o Batman.

 - Já lhe contei a minha história, Batman?

sexta-feira, 18 de março de 2016

CRÍTICA: DEMOLIDOR (NETFLIX) – 2º TEMPORADA

 

Estamos vivendo uma nova era para os super-heróis de quadrinhos, que tem saído de suas páginas coloridas e migrado para as telas do cinema. Não apenas a sétima arte tem visto essa constante crescente dos super-heróis, mas também, as televisões. Agora devemos pensar naquele ponto que causa opiniões diversas: Como um filme/série pode agradar ao público que é fã de carteirinha dos heróis coloridos, e agradar aos novatos que estão começando a entender suas histórias agora?
A DC Comics (Warner Bros) tem colocado dezenas de séries para a televisão, visando alegrar esses dois públicos. Arrow, The Flash, Gotham e Legends of Tomorrow são títulos que abordam essa temática dos heróis de quadrinhos reescrita para a televisão. Há quem afirme que essas séries fogem do verdadeiro sentido ou personalidade de seus personagens. Entretanto, há quem defenda que as séries são perfeitas, com seu ritmo mais juvenil, com tramas amorosas e discussões sobre o cotidiano das pessoas consideradas normais.
Em 2014, a Marvel Comics junto com a Netflix planeja seu universo compartilhado no formado de séries para esse serviço de streaming, e, com todos os louros da vitória, em 2015 estreava Demolidor, com 13 episódios ao todo, sendo liberado de uma única vez. Essa estratégia é muito utilizada pela Netflix. Acredito que para os amantes de cinema, assistir um filme que tenha por volta de 13 horas ao todo, seja uma experiência inominável.
A série foi um sucesso tendo críticas positivas por diversos sites, revistas e jornais ao redor do mundo todo. Com sua narrativa densa, personagens e vilões marcantes, uma excelente construção da “Jornada do Herói”, vista por um ângulo menos “fantasioso”, Demolidor veio para quebrar os paradigmas das “séries para jovens”.
Quem assiste aos filmes da Marvel Studio, sabe que suas narrativas são mais engraçadas e divertidas, visando agradar toda a família. Muitas coisas que para nós são horríveis (como por exemplo a invasão dos alienígenas em Nova York, no primeiro longa dos Vingadores), são tratadas com um enredo mais simples e divertido. Essa “falta de seriedade” é criticada por muitas pessoas, entretanto, posso afirmar, as histórias em quadrinhos são assim, caros amigos. Para vosso entendimento mais apurado, recomendo que leiam o clássico Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, do selo DC-Vertigo.
Maaaaaaaaaaaaaaas, vamos ao que interessa.
Hoje, Sexta-feira, dia 18 de março de 2016, estréia com garbo e elegância a segunda temporada de Demolidor. Isso mesmo, caros amiguinhos leitores. A SEGUNDA TEMPORADA dessa série esmagadora, que deixa muitos de seus concorrentes para trás estreou nesse dia maravilhoso, de céu azul, pipoca no microondas e refrigerante gelado.
AVISO!!!
ESSA CRÍTICA NÃO POSSUI SPOILERS DA 2ª TEMPORADA DA SÉRIE.
Resuminho básico :-P
Vamos que vamos, queridos amigos. Somos jogados novamente na Cozinha do Inferno (Hell’s Kitchen), onde encontramos Matt Murdock tendo que lidar com vários conflitos ao seu redor. Não apenas o conflito que remete ao seu alter-ego, Demolidor, mas também, em várias áreas de sua vida, como profissional, social, amorosa e com seu passado doloroso. Entretanto, quando chacinas começam a ocorrer em sua cidade, Demolidor se encontrará numa jornada onde não estará em risco apenas vidas inocentes, mas também, suas ideologias como o “Demônio de Hell’s Kitchen” e como o advogado Matt Murdock. Sem contar que, sombras de seu passado retornam para assombrá-lo e desejam o tornar aquilo que mais teme ser.
Crítica
Ao assistir a primeira temporada dessa série, fiquei maravilhado pelos princípios éticos e ideológicos que moviam o personagem principal. Sua constante busca por justiça acima de tudo, foi o que mais me tocou para continuar assistindo toda a temporada. Cada um de nós deve ter feitos escolhas no passado das quais considera que foram erros, e isso nos moldou o que somos hoje. Toda a jornada de Matt Murdock para se tornar o Demolidor, e toda a jornada do Wilson Fisk para se tornar o Rei do Crime, nos exemplificam muito bem o que são escolhas certas e erradas, além de mostrar o que quanto estamos errados sobre esse conceito de “bem ou mal”.
Nessa segunda temporada, tudo aquilo que tinha como certo e algo que todos devemos fazer e colocado em prova. Minhas ideologias e certezas foram quebradas por argumentos extremamente fortes e consistentes vindos do Justiceiro (Punisher). Acredite, esse personagem levou nota 10 em todos os quesitos de minha avaliação pessoal.
UMA DICA: PRESTEM BEM ATENÇÃO AO TERCEIRO EPISÓDIO DA TEMPORADA
A série brinca com seus sentimentos e certezas de uma forma que nem percebemos. No meio da conversa entre o Demolidor e o Justiceiro, fiquei divagando sobre meu senso de justiça, tendo que voltar alguns minutos para acompanhar novamente a conversa dos personagens.
Foggy Nelson e Karen Page também são personagens importantes demais para o desenrolar da trama, sendo indispensáveis. Ao Afirmar que esses personagens não precisavam existir, é o mesmo que afirmar que não precisamos de bom senso e aquela pequena curiosidade que nos leva a produzir grandes feitos. Dou valor também para a personagem Elektra, que tem extrema importância para revirar o “jogo ideológico” de Matt.
           
            Atuações
            Gostaria de parabenizar todos os atores envolvidos, por seus trabalhos incansáveis e sua dedicação para dar vida aos seus personagens. Todos estão excelentes em suas propostas.
            Mas, verdade seja dita, a melhor atuação foi a de Jon Berthal interpretando Frank Castle (Justiceiro). Todo sentimento de dor e seu espírito de vingança me tocou de tal forma, que comprei toda sua causa em poucos instantes. Seus olhares, trejeitos, retórica, tudo isso foi duramente estudado por esse ator, dando vida ao MELHOR JUSTICEIRO JÁ INTERPRETADO. Acreditem, de todos os três atores que já o interpretaram (Dolph Lundgren, Thomas Jane e Ray Stevenson), Jon Berthal é realmente o ator que mais resgatou a essência do personagem.
            Elodie Yung como Elektra não me convenceu tanto. Não entendi muito o propósito da personagem que, muitas vezes, tem aparições gratuitas e sem muita relevância para todo enredo. Entretanto, mesmo com essas críticas negativas, sua importância para a série é irrevogável.
            As lutas estão muito bem feitas e dinamizadas. A forma como a câmera se posiciona em meio a tanta ação, ajudou na compreensão de toda a tensão que era formada.

            Conclusão: Vale ou não a pena???
            Com certeza absoluta, vale a pena SIM! Digo mais, se houver tempo de fazer a maratona de todos os 13 episódios em sequência, FAÇA. A sensação de estar assistindo um filme de quase 13 horas é impagável.
            Seu enredo brilhante, atuações magníficas e cenas de luta sensacionais, Demolidor encerra mais uma temporada com nota altíssima e muito, muito sangue jorrando da tela.

Nota: 4.8

terça-feira, 1 de março de 2016

Um Espelho na Noite (Reescrito)


As gotículas de chuvas batiam na janela de meu quarto. Cada barulhinho me perturbava facilmente. Não havia sido um bom dia. Na verdade, nunca era um bom dia. Pergunto-me como as pessoas conseguem dar “bom dia” uma para as outras, sem ao menos saber se realmente será um bom dia ou um péssimo dia, como o meu. Trabalho numa pequena empresa no centro da cidade, sendo que para chegar até lá preciso pegar dois ônibus e um trecho de trem.
As gotas de chuva batiam na janela de meu quarto. Balancei a cabeça e cocei o queixo sob a barba espessa.
O engarrafamento de carros é sempre comum toda manhã e, com toda certeza, há algum acidente que acontece por imprudência desses malditos motoristas. Irritava-me o fato deles terem uma carteira de motorista e carros ou motos para dirigirem tranquilamente, sem ao menos se importarem com os horários de ônibus e trens. Havia uma conseqüência muito ruim se os perdesse.
As gotas de chuva batiam na janela de meu quarto. Ergui-me da cadeira, afastando da mesa do computador onde arrumava um erro na planilha financeira da empresa. Fui até a cozinha, pois precisava colocar um pouco de café na minha caneca da Peppa Pig. Deus, como eu odeio esse desenho.
Quando finalmente consigo chegar à empresa, enfrento um elevador cheio de pessoas, que assim como eu, estão totalmente mal-humoradas e insatisfeitas com suas vidas. Acabo sempre ficando no meio de todas elas ouvindo suas intermináveis fofocas e problemáticas sobre a vida. Meu cabelo, que tanto prezo por deixar bem arrumado, fica totalmente bagunçado com tantas pessoas se mexendo, entrando e saindo do elevador.
As gotas de chuva batiam na janela de meu quarto. Sento-me novamente na cadeira e levo á boca a caneca da maldita porquinha, com o líquido quente descendo garganta abaixo, fazendo-me sentir um arrepio na espinha. Sinto meu corpo esquentar.
Após entregar todos os relatórios de vendas semanais, meu chefe manda que pegue seu café e ai de mim se não estiver quente. Ele me dá cinco minutos para isso. Corro até a pequena cozinha do escritório, driblando os apertados corredores e as secretárias que adoram bajular as pessoas para conseguirem subir na vida. Dou de cara com uma fila de pessoas que, assim como eu, desejam seu tão esperado café. Após esperar exatos três minutos e vinte e dois segundos, ando o mais rápido possível de volta para a sala de meu chefe. Ao entregar para ele, leva o copo à enorme boca com seus dentes encavalados e mal escovados, despejando boa parte do líquido por goela abaixo. Abaixa o braço com o copo. As costas da mão esquerda servem como guardanapo. “Está horrível” – diz o desgraçado – “Da próxima vez desconto de seu salário” – sai de cena dando gargalhadas guturais.
As gotas de chuva batiam na janela de meu quarto. Abro outra planilha no Excel e vejo que algumas contas estão erradas. O Maldito usou a fórmula errada. Preciso de mais café. Engulo boa parte do líquido na caneca e nem me importo com sua quentura. Ainda resta um pouco.
Meu dia inteiro é fazer aquilo que meu chefe deveria fazer. Digito planilhas. Refaço cálculos errados. Trago mais café para sua boca miserável. Envio emails para outros diretores de outras empresas. Formulo negócios. Atravesso três quadras para encontrar o almoço que tanto deseja. Volto correndo para a empresa e quase sou atropelado por uns três ou quatro motociclistas. Ouço-o reclamar do pouco de salada que há no prato e no frango que está pouco grelhado. Sobram-me apenas seis minutos do meu horário de almoço para comer a pequena marmita que minha mulher fez. Ontem de tarde discutimos pelo celular. Ela queria que buscasse nossa filha na escola, mas eu não podia. Ela me xingou de vários nomes, mas ainda deixou a marmita pronta para que levasse nesse dia. Abri a tampa do pote retangular. Havia muita terra dentro e um bilhete. “Coma areia, seu bosta” – a maldita me pegou de jeito. Meu chefe gritou meu nome pedindo que fosse à sala dele. Passou apenas dois minutos. A ira me consumia por completo. Cerrei o punho. As unhas estalavam.
As gotas de chuva batiam na janela de meu quarto. O relógio batia meia noite e aquele som me perturbava ainda mais. Eu precisava dormir, afinal acordaria quatro e meia da manhã, entretanto, a planilha não estava completa. Minha cabeça latejava. Meus olhos estavam quase lacrimejando e piscavam de forma descompassada. O pescoço coçava. Preciso de café.
Ele brigava comigo. Dizia que minha atitude como seu ajudante estava totalmente desleixada, desde a temperatura de seu café, até os cálculos que refiz e ainda estavam errados. Aquele maldito. Aquele maldito miserável. Não conseguiu tirar o sorriso de sarcasmo e seus dentes encavalados com restos de alface e outras coisas, ao me dar aquele sermão.
As gotas de chuva batiam na janela de meu quarto. Minhas mãos tremiam. Os dedos estavam quase dormentes. Devo ir dormir, mas os malditos cálculos não estão completos. A planilha é para amanhã. Eu preciso de mais café. Mais café. Mais café.
O resto de meu dia foi apenas ser humilhado ainda mais e ouvir pequenos risinhos de outros funcionários. “Olha lá aquele otário” – dizia alguém. “O chefe faz ele de sapato” – diziam outros. “Ele não passa de um chiclete que a está debaixo de uma mesa. Ninguém se importa” – diziam outros bajuladores. A ira me consumia ainda mais.
As gotas de chuva batiam na maldita janela do meu quarto. Não posso prosseguir com isso. Esse barulho não passa. O ar começava a me faltar. Empalidecia cada vez mais. Bagunçava meu próprio cabelo com as mãos. Os olhos estão abrindo e fechando sem ter sentido algum. Eu preciso de ar. Eu preciso de ar. Malditos. São todos uns malditos. Eu preciso de ar. Não consigo respirar. Aqueles malditos.
Ele me mandou levar seu notebook para casa e terminar as duas últimas planilhas que faltavam. Minha filha tinha uma apresentação de Ballet e não pude ir. Minha mulher chegou em casa. Gritou mil e uma besteiras comigo, dizendo que não me amava mais. Minha filha gritava levando às mãos ao ouvido os tapando. Fez as malas. Pediu um Taxi. Ele chegou. Ela foi embora. Levou Joana consigo. Fiquei parado e ouvir tudo calado. Os olhos piscavam como nunca. O som estridente de Joana chorando ainda estava no vazio do meu ser.
As gotas de chuva batiam na maldita janela do meu quarto. A bateria do notebook acabou. Não salvei as planilhas. Tudo havia se perdido. Vozes falavam em minha cabeça. O café acabou. Peguei a caneca. Flexionei o tronco para frente. Gritei como uma besta em seu abate. Quebrei a caneca em minha cabeça. Gritei. Gritei. Gritei. Retirei o notebook de cima da mesa e o joguei no chão. Pisei em cima dele. Pisei. Pisei. Pisei. Pisei. Mais gritos. Arranhei minhas bochechas com as unhas. Esmurrei a parede. Esmurrei de novo. De novo. De novo. De novo. O sangue descia de meus punhos. Parei. O silêncio reinou. As gotas de chuva batiam na maldita janela do meu quarto. Virei o rosto em direção à janela. Abri a janela.
As gotas de chuva batiam no meu rosto agora deformado. Não havia ninguém na rua. Nenhuma pessoa decente andaria por aí uma hora dessas. Suguei todo o ar que pude. Ele não vinha para meus pulmões. Agonizei. Esbravejei. Gritei. Golpeei minha cabeça contra as grades da janela. Uma, duas, três, quatro. O sangue descia ainda mais de minha testa. O líquido escarlate e quente se misturava ao frio líquido que caía do céu sobre meu rosto.
As gotas de chuva batiam no meu rosto deformado ainda mais. Há um terreno baldio do lado de minha casa. Virei meu rosto e observei todo tipo de porcaria que tinha ali. Mato, restos de madeira, pneus furados, bolas de futebol de crianças, um carrinho de mão sem rodas, vassouras, monturos de areia e aquilo. O que é aquilo? Eu não sei. Você sabe? Não, mas está me olhando. O que é aquilo? Que forma grotesca é aquela. Com força bestial, entortei as grades e passei a cabeça para o lado de fora. As gotas de chuva batiam no meu rosto deformado ainda mais. Por que está me olhando? Quem é você?
As gotas de chuva batiam na minha cabeça que sangrava. O que é isso na sua cabeça? Chifres? Por que é tão feio? Por que não fala comigo? O que você quer afinal.
As gotas de chuva batiam nos chifres que brotavam sobre minha cabeça. Uma bocarra se abriu. Dentes pontiagudos apareceram. Olhos fundos e vermelhos. O rosto se transformava num vermelho quase vinho. A angústia tomou conta de mim. A criatura me olhava com uma fome voraz. Tentei puxar a cabeça de volta, mas como num passe de mágica, as barras que havia entortado, se prendiam em meu pescoço. O quarto pareceu encolher.
As gotas de chuva batiam nos meus chifres e desciam sobre minha bocarra, passando sobre meus olhos vermelhos e fundos. “O que você quer?” – indaguei. “Por que não fala comigo, sua fera dos infernos” – não havia respostas. O ar não entrava em minha boca ou narinas. Meu pulmão estava explodindo. Minha vida se esvaindo. Meu pescoço doía no meio das barras de ferro. Com minhas unhas eu arranhava a parede sujando-as de sangue. Preciso de ar. Quero ar. Por favor. Me ajude. Me ajude. Me ajude. “Me devore, me mate, mas faça essas vozes irem embora” – a garganta começava a doer.

A chuva parou e ouvi um forte relâmpago cruzar o céu. O terreno baldio foi clareado por alguns segundos. Vi o que a besta era. Apenas um espelho. A criatura sou eu. O que sou de verdade e muito mais do que isso. Aquilo que preciso fazer. O ar voltou aos meus pulmões. As barras haviam sumido. O sangue que jorrava também desapareceu. Olhei para dentro do quarto. O notebook estava ligado e sua bateria ainda estava na metade. Eu o desliguei. Coloquei em minha pasta. Desci até a cozinha com minha pasta e a caneca. Abri a pasta. Coloquei dentro um facão. Abri um grande sorriso. Nunca estive tão ansioso para o dia de amanhã na minha querida empresa. Mas, por agora, preciso de mais café.