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terça-feira, 7 de junho de 2016

As Aventuras de Dhagar e Thorque - As Catacumbas do Rei Morto-Vivo



-Irmã. –Thorque rompeu o silêncio noturno - Eu tenho uma dúvida. - A enorme bárbara tentava amolar seu machado com uma pedra irregular. Algo nada recomendável. De tempos em tempos, segurava para trás seu cabelo, que insistia em cair na frente do rosto.
- Você poderia ir dormir e parar de encher meu saco, não é? – Dhagar, que estava deitada e pronta para dormir, respondeu com aspereza.
- Não, é sério! – havia realmente um tom de dúvida em sua voz fina, como de uma gralha que havia acabado de levar uma porrada. Pelo menos Dhagar pensava dessa forma – Já se perguntou como vamos conseguir terminar essa missão?
A outra bárbara retirou o cobertor feito por vários pelos de animais, sentou-se no pequeno lençol em que estava deitada e coçou a testa com seus dedos finos, mas calejados. Sabia que Thorque não era o ser mais inteligente do planeta – nem ela mesma era – mas resolveu deixar seu sono um pouco de lado e atender aos questionamentos de sua irmã mais nova.
- O que é dessa vez, Thorque? – bocejou.
- Você já se perguntou como vamos matar o tal do Rei das catacumbas? – deixou o machado de lado. Dhagar fez uma mensura que iria responder, mas pensou bem antes de soltar qualquer palavra.
- O que você quer dizer com isso?
- Como é que vamos matar um morto-vivo, sendo que ele está morto e ao mesmo tempo vivo? – a dúvida parecia ser algo inútil, mas Dhagar não conseguiu responder de primeira. Nem de segunda. Não conhecia ninguém que matou um morto-vivo antes – muito menos chegou a conhecer um morto-vivo – isso deixou a guerreira com certa pulga atrás da orelha.
- Bah! – exclamou depois de tanto pensar e não encontrar respostas. Dhagar odeia mistérios e tudo que a faça ficar dando voltas em pensamentos, sem encontrar qualquer resposta – Arrancamos a cabeça e duvido que volte a viver de novo. Só isso.
- Verdade... – Thorque respondeu, mas seu tom de voz indicava que ainda queria pensar mais.
Outro silêncio se fez.
- Mas se está morto, como vamos matá-lo de novo? – ela não conseguia deixar de pensar naquela loucura, na verdade, voltar à vida depois de morrer era mesmo uma loucura – Arrancar a cabeça de um morto-vivo não mudaria muita coisa, afinal de contas, para quê ele precisa de uma?
- Você pensa demais, irmã. Larga esse machado, deita perto da fogueira e se aquece um pouco. Amanhã sairemos dessa maldita floresta e conseguiremos matar o Rei do não-sei-o-que.
- Tem razão, irmã. – Thorque olhou para o céu noturno. Avistou milhares de estrelas, uma junta das outras e algumas mais afastadas também. Observou Cainé e Guilna, as duas estrelas maiores que iluminavam todas as noites daquele pequeno mundinho.
- Dhagar... – prosseguiu ela, sem ter receio de levar um tabefe bem dado de sua irmã mais velha.
- Hum... – resmungou Dhagar, não tendo a decência de abrir a boca.
- Será que mamãe e papai estão em Cainé? – isso fazia parte da crença de Teóryan, uma religião que dominava aquela região. Quando alguém morria e possuía uma alma “pura”, iria morar em Cainé com os deuses. Aqueles que morriam sendo “ruins” iriam para Guilna, pagar pelos seus erros eternamente. No entanto, Dhagar não era o tipo de mulher religiosa. Não acreditava em nada, muito menos em deuses. Sua falta de crença era quase um trauma, já que seus pais haviam sido mortos quando tinha apenas dez anos de idade. Um grupo de trolls havia invadido sua antiga vila e dizimado quase todos os moradores, restando apenas as duas. Sozinha, conseguiu matar três grandes trolls e fugir levando Thorque, que chorava muito por assistir tamanha brutalidade. Se existia algo que mais amava em todo mundo, era Thorque.
Ainda muito nova, precisou lutar contra a miséria do reino, tendo que guerrear em arenas para levar comida para sua casa. Furtava algumas frutas, legumes e pães. Matava alguns pássaros e, com quase todo o dinheiro, comprava água quase potável para não morrerem de sede. Mesmo passando por tantas dificuldades, sua irmãzinha nunca reclamou, sempre lhe agradecendo por tudo que fazia. Dizia que um dia retribuiria e a ajudaria a ganhar dinheiro. Thorque queria que fossem ricas e pudessem ajudar os mais necessitados.
Quando Dhagar fez quinze anos, se alistou no exército da cidade, se destacando como uma excelente lutadora. Logo, começou a prosperar e isso perturbou alguns senhores da burguesia. Como uma criaturinha que morava nas ruas da cidade poderia, quem sabe, liderar um dos exércitos? Não apenas isso, mas como uma mulher poderia fazer tais coisas? Liderar homens? Por essa causa, nunca deixou de ser uma recruta.
Anos depois, Thorque também se uniu ao exército e demonstrava as mesmas habilidades marciais. As irmãs conseguiam vencer, nos treinos, todos os outros soldados. Certa vez, derrotaram facilmente dois dos comandantes mais fortes, algo que prejudicou muito suas reputações. Foram acusadas de traição contra o reino e seu soberano e foram condenadas à morte. Não aceitando isso, iniciaram um motim contra os líderes políticos da cidade, juntando vários outros homens e mulheres nessa cruzada. Muitos foram os mortos, no entanto, conseguiram uma vitória. Dhagar e Thorque mataram o líder da cidade e distribuíram os bens por entre todos os habitantes. A pequena cidade foi considerada como fora do domínio do Rei Horan, ou seja, uma cidade de bárbaros. Para que pudessem sustentar seu povo tornaram-se mercenárias – as melhores – sendo contratadas por vários senhores de outros reinos. A fama das duas irmãs correu por todo o mundo.
Há poucos dias atrás, um homem foi ao encontro das duas para contratá-las.  Ele as regulava de cima embaixo. Dhagar, sem paciência alguma, queria entender o motivo de tamanha curiosidade.
- Perdeu alguma coisa no meu corpo, vovô?
- Oh, me perdoe, bela dama, é que... – ele se interrompeu.
- É que? – Thorque prosseguiu.
- É que pelos seus nomes, imaginava que fossem... homens. – uma veia de irritação apareceu na testa da guerreira mais velha. Não era a primeira vez que foram confundidas com homens por conta de seu nome pouco comum entre as mulheres. Dhagar odiava depender de qualquer um, seja homem, mulher ou outra raça que seja. Apoiou o antebraço sobre a mesa, batendo com a caneca de madeira, esparramando um pouco de hidromel.
- Tem algum problema com mulheres? – se ele tivesse, com certeza o mataria ali mesmo.
- Não, bela dama. – sua educação era um misto de reverências e temor – Gostaria de contratá-las para uma tarefa... peculiar.
- E qual seria esta tarefa? Quer que matemos um grão-orc? Ou seria um sereano? Isso poderia custar bem caro...
- Vocês matarão o Rei Morto-Vivo! – silêncio. Dhagar abriu a boca. Thorque se aproximou mais. Achou que o vovô esquisito estivesse brincando.
- Como é que é o negócio? – perguntou Dhagar ao contratante – Está nos pedindo para matar um morto?
- Não. – respondeu o senhor de idade quase fazendo força para terminar a frase – É um morto-vivo!
- E o que seria um morto-vivo? – Thorque também estava confusa.
- Vocês nunca viram um? – indagou o velho, sendo respondido no mesmo momento pelo balançar negativo da cabeça das guerreiras. Tomou fôlego – Um morto-vivo é um experimento de bruxo necromante.  Ele procura cadáveres por aí e, com alguma magia profana, trás de volta para vida o sujeito “afortunado”. Então o morto se torna um servo do homem que o invocou. Porém, não foi bem assim que aconteceu.
- E o que aconteceu então? – os olhos de Thorque estavam arregalados, como se estivesse adentrando verdadeiramente na história. Sempre fora apaixonada por estórias, lendo dezenas de livro ou cantando juntamente com os bardos de sua vila. Era diferente de sua irmã, que só pensava em treinar e batalhar.
- Existia um necromante em minha vila. Era um sujeitinho repugnante, sempre longe de nós, morando numa velha masmorra que comprou por um preço razoável. Ninguém gostava dele, de fato, mas nós o respeitávamos. Uma das leis que temos em Rhodavir é sempre respeitar as crenças e práticas dos outros, desde que essa prática não perturbe a paz de nossa nação.
- Pois bem. – prosseguiu o velho, coçando as costas com os dedos quase em carne viva – Não era muito frequente ver o sujeito por aí, estando sempre confinado em sua moradia maldita. Certo dia, mais ou menos há quatro anos, numa noite fria e morta, uma luz verde emergiu do lugar onde ficava sua masmorra. Toda a construção veio ao chão e o sujeito nunca mais foi visto. Apenas a criatura que ele conjurou das profundezas. Um enorme ser, com quase quatro metros de altura, saiu do local, carregando uma enorme espada e um cajado mágico, que brilhava ameaçadoramente. Nossos guardas tentaram abater a criatura mórbida e foram mortos brutalmente. Não possuíamos mais defesas. Então, a criatura metade humana e metade esqueleto, com vários órgãos caindo para fora do corpanzil e sangue negro escorrendo por todo o corpo, ordenou que nós pagássemos impostos por nossas vidas e governaria toda Rhodavir sem qualquer questionamento. Muitos foram contra e hoje já não estão mais entre nós. Bem, até estão, mas também são mortos-vivos.
- Já ouvi falar de Rhodavir. – a guerreira mais velha o interrompeu – Vocês possuíam uma riqueza enorme. As histórias diziam que perderam essa riqueza por causa de uma onda de doenças no local.
- Essas doenças nos assolam até hoje, nobre dama. – agora o velho coçava o rosto e um fio de sangue desceu por sobre a testa– Todos nós estamos doentes e com certeza morreremos. Tudo isso graças à energia pútrida que sai desse desgraçado.
Dhagar levou a mão ao queixo em tom pensativo e, de fato, não gostava muito de pensar em questões extremamente complicadas como essa. Nunca havia enfrentado um morto-vivo, muito menos sabia qual era sua aparência, nem nada do gênero. Acabou aceitando a oferta do homem, que em meio a lágrimas, agradeceu. Thorque sabia que aquele indivíduo não voltaria para Rhodavir com vida.
Agora, deitada em meio à luz das estrelas-mães, buscava lembrar-se do rosto de seus pais, uma tarefa que se tornou extremamente complexa ao longo dos ínfimos segundos que Thorque havia feito aquela pergunta.
- Sabe que não acredito nisso... – Dhagar tinha certo pesar na voz. A morte dos pais se tornou um tabu em todos esses anos. Elas nunca conversavam sobre isso, nem nada parecido – Cainé, Guilna... não passam de baboseiras...
- É, eu sei... – Thorque se contentou com a resposta curta e grossa da irmã. Virou para o lado, buscando afastar os olhos das luzes das estrelas que estavam sobre as duas, observando-as e, quem sabe, até mesmo cuidando.


Rhodavir era realmente uma cidade de merda. Uma cidade rodeada por um muro gigante de pedras. As bárbaras estavam no portão. Um guarda estava parado na frente das duas, segurando uma espada e a outra aberta, como se pedisse algo. Thorque sentiu o café da manhã querer retornar para fora de seu corpo ao sentir o cheiro deteriorado de homem.
O guarda possuía uma cota de malha extremamente destruída, sendo segurada por apenas uma alça no ombro direito. Várias marcas de corte por todo o corpo davam um contraste mortal à criatura. Metade de seu rosto era puro osso, com resto de músculos que caíam pelo chão. Vermes comiam metade do seu coro cabeludo e estavam espalhados por todos os cortes do corpo. Outrora fora um humano comum, agora, uma aberração do mais profundo abismo.
- Onde estão suas autorizações? – perguntou o cadáver ambulante. Elas não tinham palavras para responder de imediato – Onde estão?
- Não precisa repetir, nós entendemos sua língua. – Dhagar enfiou o braço dentro da bolsa feita de couro de tigre-colosso e entregou em suas mãos dois pergaminhos. O indivíduo observou as informações contidas ali, que não passava de uma falsificação. Avaliava com apenas o único olho “bom” que possuía. O único que não tinha vermes em suas extremidades comendo sua córnea.
- Isso aqui é falso! – afirmou o sujeito cadavérico com veemência. Thorque engoliu em seco.
- Falso? – Dhagar fingiu surpresa, e todos sabemos que ela é ótima com mentiras – Meu nobre Senhor, não está vendo o carimbo perfeito de vossa majestade, o Rei Horan – o indivíduo aproximou novamente sua cabeça grotesca dos cartões.
- É falso, pensa que me engana forasteira? – ele coçou a axila direita com os dois cartões e novamente Thorque quase vomitou.
- Como ousa falar assim com uma mensageira de vossa majestade, Rei do oeste e Senhor dos Dragões negros e brancos de todo o reino? – se referia ao Rei Horan. O guarda regulou as irmãs bárbaras da cabeça aos pés. Ambas vestiam poucas roupas. Dhagar trajava um protetor de seios de couro, junto com uma saia rasgada na frente para lhe dar agilidade nas pernas bem torneadas e fortes. Os cabelos ruivos claros soltos ao vento. A espada estava presa nas costas. Thorque, por sua vez, vestia uma capa curta que protegia seus seios, mas deixava seu abdome amostra. A saia curta era feita de couro, junto com as longas botas de aço. Apoiava o machado sobre o ombro esquerdo, segurando com suas luvas de couro com detalhes de aço. Diferentemente de sua irmã, os longos cabelos ruivos eram mais escuros e algumas mechas estavam presas por presilhas feitas por algumas crianças de sua cidade. O guarda sentiu-se intimidado pelas grandes mulheres. 
- Você – retornou a falar – Uma mensageira de Horan? – o cadáver gargalhou. O som era realmente muito grotesco – Escuta aqui. Que tal você dar meia volta, antes que eu enfie essa lança no seu rabo gigante e te rasgue por inteira. Não somos de brincadeiras fúteis em Rhodavir. Vá embora daqui. Agora.
- Nobre Senhor, peço-lhe humilde respeito aos serviçais de vossa majestade. – Dhagar prosseguiu mesmo assim – Sabemos que o reino precisa de mais pessoas como vossa senhori... – a cabeça do guarda morto-vivo agora pairava no chão e perto aos pés de Dhagar. O corpo pendeu para trás e se espatifou, fazendo um baque abafado no chão.
- Mas que merda foi essa? – a pergunta foi direcionada para Thorque – Achei que o plano fosse manter a discrição e matar apenas o Rei!
- Acha mesmo que nos deixarão sair daqui após a morte do Rei? – Thorque limpava o machado com um pano branco que estava levando. Fez uma careta. Estava com muito nojo – Se existem mais seres grotescos como esse, devemos matar todos.
- É, faz sentido. – concluiu Dhagar.
Passaram pelo portão. Várias casas e casebres enfeitavam a cidade e, pelo menos a maior parte delas, era feita de madeira praticamente podre. Os tetos eram de palhas ou barro. O chão não era sólido, mas sim, uma massa escura, estranha e barrenta. A cidade de Rhodavir era conhecida por sua riqueza e por sua vasta dimensão. Bom, pelo menos era assim, no entanto, agora não passava de um pequeno vilarejo e não era tão vasto assim. Algumas pessoas estavam fazendo suas atividades diárias e quase não repararam nas duas mulheres. Suas roupas eram quase trapos e muitas delas até mesmo cheiravam mal. Uma mulher estava de cócoras com uma vasilha de barro, dando algum tipo de comida para uma criança quase esquelética. Thorque sentiu uma imensa raiva de tudo aquilo que estava vendo.
Fazia muito frio ali e a criança estava tremendo, batendo os dentes num ritmo frenético. Dhagar se afastou da irmã e se aproximou dos dois. A mulher levou um susto ao uma guerreira tão alta. Abaixou-se, colocou a mão dentro da bolsa que carregava, retirou o cobertor que se cobrira na noite anterior e deu para a mãe do menino. Levantou novamente e bagunçou o cabelo do pequenino, um gesto quase afetivo em meio tanta desgraça, virou suas costas e andou na direção da irmã.
- O-Obrigada. – respondeu uma voz feminina. Súbito, antes que pudesse responder, uma sirene tocou. O barulho era tão alto que Dhagar não conseguia ouvir a própria voz quando perguntou o que diabos estava acontecendo. Não demorou muito até um grupo de guardas, parecidos com aquele que estava do lado de fora, cercassem os dois homens forasteiros. Thorque puxou seu machado afiado. Ficou em posição ofensiva. Dhagar retirou sua espada e ficou de costas para sua semelhante.
Havia quase cinquenta guardas ali e eles eram de todas as raças possíveis. Anões, elfos, gnomos, homens, eladrins e toda sorte de feras. Carregavam espadas, lanças, maças, clavas, escudos e muitos outros objetos que utilizariam para matá-las. Dhagar e Thorque sorriram. Antes que qualquer cabeça pudesse rolar pelo chão podre de Rhodavir, uma figura alta e grotesca surgiu sem ser convidada para a festa de arromba que logo aconteceria. O sujeito era extremamente alto e sua raça era humana. As duas guerreiras eram maiores que dois metros de estatura, mas esse cara era muito maior. Parecia uma porta dessas catedrais malucas que tem por todo o reino. Tal como os guardas, esse humano também era um morto vivo, mas vestia-se com elegância, trajando um manto real púrpura com alguns detalhes e símbolos pintados de dourado no local. Os olhos eram todos negros e já não possuía nariz. Faltavam vários dentes na boca, o que lhe dava um ar engraçado. As botas eram de couro fino. Uma coroa de ouro que pairava em sua cabeça apodrecida.
- Então – o homem-esqueleto-morto-estranho-e-feioso, começou a falar. As palavras saíam de sua boca, mas ela não mexia – Vocês vêm em meu domínio, matam um soldado real e ainda dão para aquela criança miserável um manto para se cobrir... Quem acham que são para fazerem o que quiserem aqui? Essa é minha cidade, minha, não pensem que deixarei isso impu...
- Sua cidade?! – indagou Thorque falando mais alto que o cadáver-vivo – Você rouba a cidade desse povo, os deixa na miséria e ainda tem coragem de chamar de SUA CIDADE?
- Acho que deveria respeitar vossa alteza! – Dhagar respondeu ao irmão em tom grave, como se quisesse censurá-lo por algo de errado.
- Está louca? Vai defender essa criatura horrenda?
- Olha o respeito. Não está vendo? É o Rei. – Dhagar apontou a longa espada para a irmã – Não posso deixar que fale assim com ele!
Sem motivo algum, colocaram-se uma contra a outra. Uma mudança brusca e estranha. Dhagar apontava sua espada mirando o rosto da irmã, que por sua vez, segurava o machado com muita força. A tensão era tanta, que algumas gotas de suor desciam do rosto delas. Os guardas abaixaram suas armas e abriram espaço para seu líder passar. O Rei morto-vivo se posicionou atrás de Dhagar e exibia um sorriso estranho – uma mistura de tristeza, com felicidade ou raiva, sei lá. Algo assim.
- Muito bem, minha querida bárbara. – a criatura cadavérica começou seu discurso novamente – Mate sua irmã. Não há nada mais belo nesse mundo que isso. Mate-a e deixarei que se una à minha horda.
- Como quiser, vossa majestade. – Dhagar urrou, virou o tronco girando a espada, num corte horizontal. A espada executou com perfeição o movimento, cortando o morto-vivo pela pelve, separando seu tronco dos membros inferiores. Os restos mortais caíram para lados opostos e o sangue negro jorrou.
Os guardas se entreolharam assustados. Nunca haviam visto vossa majestade tombar em batalha – na verdade, nunca viram o Rei entrar em batalha alguma. Dhagar girou a espada no ar, dispersando o sangue podre que estava na espada. Thorque deu um tapa na nuca da irmã e ambas gargalharam. Abaixaram a guarda isso deu a oportunidade de um elfo morto-vivo atacá-las por trás. Segurava uma lança. Desferiu o golpe visando à nuca da bárbara mais nova, mas encontrou apenas o vento e o chão, quando este mesmo braço caiu decepado. Não demorou muito até a cabeça do elfo fazer companhia ao braço, após o corpo cair, inerte.
Thorque havia se defendido de forma majestosa, e isso deixou os guardas ainda mais perturbados, – mais perturbados do que estavam antes, já que seu rei estava caído partido ao meio – porém, mesmo estando desestabilizados, todos resolveram atacar ao mesmo tempo. Um emaranhado de escudos, espadas e outras armas enferrujadas.
Dhagar soltou uma gargalhada mortal e cortou os dois primeiros humanos-mortos que vinham pela frente. Os elfos se agruparam e atacavam em turno Thorque – os filhos da mãe, mesmo mortos, ainda eram exímios estrategistas – que golpeava de cima para baixo, horizontalmente, de baixo para cima e esquivava com maestria. Dhagar jogou a espada para cima e cruzou um chute no rosto dos anões que caíram no chão, com os pescoços quebrados. Pegou o machado de Thorque que caiu em suas mãos como magia e desferiu outros cortes, esmigalhando os escudos dos orcs que se aproximavam.
Thorque esmurrou a têmpora do eladrin careca que perdeu o equilíbrio e caiu em cima de dois gnomos. Segurou um elfo pelo pescoço e o torceu. A espada de Dhagar caiu fixando-se no chão, em pé e orgulhosa. Ela segurou sua bainha e a retirou sem muitos problemas, girando seu tronco e deixando que o peso do próprio corpo a conduzisse para outros golpes.
Os mortos-vivos tombavam um após os outros em meio a tanta maestria dos movimentos das guerreiras. Enquanto alguns guardas, que estavam mais atrás, sentiam medo e incerteza ao adentrarem no circulo sangrento, Dhagar e Thorque urravam e gargalhavam a cada golpe bem delineado. Um dos mortos-vivos chegou a pensar que estavam apenas brincando e distribuindo golpes aleatórios. Uma brincadeira voraz com uma precisão marcial incrível.
Thorque arremessou a espada em direção a uma fileira de guardas, atravessando-os. Segurou um humano-morto em sua frente e retirou sua espada, como se fosse um escudo. O guarda não conseguiu se defender de seus próprios companheiros, que estocaram várias e várias vezes com a ponta de suas espadas enferrujadas. A irmã bárbara mais nova arremessou o escudo morto em cima de um grupo de anões. Pulou em cima do corpo e esmagou a cabeça de dois deles, triturando o crânio. Dhagar segurava dois manguais e os girava, estourando crânios com simples movimentos do tronco. Não demorou muito até quase todos os guardas estarem no chão. Alguns acompanhavam à distância.
- Podemos entender que vocês se renderam ou ainda querem experimentar o poder de sentir medo da morte?
- De novo, né. Estão mortos desde o começo. – riram muito. Longe da batalha, os cidadãos observavam com cautela tudo o que acontecia, sentindo medo mais do que nunca. Uma mãe segurava a criança no colo, estando em prantos juntamente com seu bebê. Outro homem tentava proteger o pequeno bezerro que tinha. Outras famílias se escondiam em porões, talvez achando que pudessem sair ilesos de toda aquela chacina. Quem seriam aquelas mulheres que estavam matando todos os guardas de vossa majestade? Libertadores ou apenas outros ditadores?
Os guardas não avançavam de jeito algum, mas também não soltavam suas armas e escudos. Queriam lutar, mas não conseguiam encontrar qualquer tipo de estratégia para vencer seu inimigo. Um humano pequeno que já não possuía músculos no rosto, estando apenas com uma caveira amarelada e dentes caídos ou quebrados, tremia de medo. Olhou para o chão e viu uma sombra grande aparecer atrás dele. Ao virar o rosto viu seu Rei em pé, novamente.
- Olha quem voltou à vida. – disse Dhagar com desprezo e sede de mais sangue – o Reizinho.
- É verdade, havíamos esquecido que esse cara já estava morto antes. – Thorque complementou.
- Que vacilo o nosso. – mais risadas.
- Eu estava apenas descansando, suas miseráveis. Fiquei observando seus movimentos e esperando para lhes entregar ao destino negro que as esperam!
O Rei das catacumbas murmurou algumas palavras baixinho e em seguida surgiu um cajado caindo em suas as mãos. Segurou com força e o apontou para cima. O céu, que outrora estava coberto por nuvens, se escureceu ainda mais, fazendo com que a temperatura caísse rapidamente. Gotas de água começaram a cair. Não apenas isso. Trovões e descargas elétricas desciam com vontade, acertando todas as casas ao seu redor. Pessoas corriam para todos os lados, desesperadas para salvarem suas vidas, Um raio acertou a cabeça de uma mulher em cheio, transformando-a em uma gosma preta e vermelha.
Dhagar e Thorque estavam paradas, esperando que o Rei fizesse algum ataque, mas, na realidade, estava longe apenas invocando feitiços de raio. Thorque suspirou, parecendo estar cansada ou entediada. No mesmo momento, um dos trovões desceu sobre suas cabeças, num ímpeto impossível de ser previsto.
- HAHAHAHA. – o Rei dos Mortos-Vivos começou a rir – E esse é o fim dessas guerreiras que ousaram guerrear contra mim. O maior dos soberanos. O mais poderoso ser sobre toda... - Súbito, recebeu um impacto muito forte em seu ombro e tombou no chão, caindo de maneira abrupta e sem chance de resistência. Não compreendeu nada, até olhar de volta ao local onde acabara de cair o raio e lá estava algo que não se via todos os dias.
Havia uma mulher e não parecia ser nenhum das duas. Sua estatura era mais baixa que a das irmãs, vestia uma manta negra, deixando os braços amostra. Segurava um cajado negro que apontava em direção ao rei morto-vivo. Um enorme cabelo branco descia até o chão. Seus olhos também eram brancos e parecia que estavam brilhando, emanando algum tipo de energia. A figura emanava uma aura de perigo, como se qualquer momento pudesse destruir o mundo inteiro. O rei se colocou de pé, sentindo que deixara algo cair no chão. O braço. Tentou invocar algum feitiço para restauração, não dando certo. Uma sensação estranha começou a percorrer seu corpo. A visão ficou turva e caiu novamente, levando o outro braço até a ferida. Estava confuso, nunca sentira tal coisa.
Gritou ao ver o sangue escarlate jorrar de seu corpo. Não havia se dado conta que a cor de sua pele retornara ao normal. Sentiu algo pular em seu peito. O coração estava batendo. O Rei, que outrora estava morto e vivo ao mesmo tempo, agora vivia de verdade. Seus poderes arcanos de necromancia o haviam abandonado. Era apenas um humano alto, comum e assustado.
- Quem... – começou a falar. Sua voz não parecia mais cadavérica – Quem são vocês para que tragam um morto à vida... Ordeno que me digam a verdade... – a boca se encheu do acre sabor de seu próprio sangue, fazendo com que vomitasse.
- A verdade? – disse a mulher de cabelos brancos, emanando luz de quase todo seu corpo – Tudo bem. A verdade é que você não ordena nada. Morra em sua própria ignorância e suma da vista dos deuses. – outra energia saiu de seu cajado indo rapidamente em sua direção.
- deusas... – fora a única palavra que conseguira pronunciar. O raio cobriu todo o corpo do homem que evaporou no mesmo instante.
A mulher de olhos e cabelos brancos observou toda a destruição ao seu redor. Casas destruídas. Fogo por todo local. A vida parecia abandonar Rhodavir. Ergueu seu cajado acima da cabeça e girou com força no ar. O fogo desapareceu. As nuvens negras sumiram, dando lugar para o céu azul. Os guardas mortos e toda a sujeira causada pela guerra também haviam sumido.
As pessoas começaram a sair de suas casas e esconderijos. Encontraram Dhagar e Thorque sentadas no local onde estavam guerreando antes. Cada uma comia uma maçã.

- E então. – disse Dhagar – Onde está nossa recompensa? – sorriu. 

terça-feira, 31 de maio de 2016

Exagero?


Schizzo_di_sangue.jpg
Meus dias são assim...
- Boooooooom diiiiaaaaaa, Albertinhoooo. – o “diiiiaaaa” soa como um falsete pessimamente executado, além de lembrar-me como meu nome no diminutivo soa ridículo. Não adianta mais lançar meus olhares ferozes em direção sua direção. É forte e consegue me levantar. Olha dentro da minha alma corrompida pelo álcool da noite passada, beija minha bochecha e envolve-me com seus braços longos, grossos e flácidos. Sinto o cheiro de seu perfume fedido como mijo de rato adocicado com coca-cola zero. O abraço dura mais de dez segundos. Quando me larga, caio de volta na poltrona de couro. Violado. Quero regurgitar toda a nojeira desse borra botas.
Ele é George, o chefe amoroso. Já lhes disse como odeio esse sujeito? Faz com que minhas entranhas se contraiam, os órgãos mudem de lugar e a cabeça exploda em milhares de planos nefastos para destruir célula existente nesse maldito asqueroso.  Trabalho aqui há mais de quatro anos. Agora faça as contas. Veja quanta merda tive de aguentar. Sou péssimo em matemática. 
No entanto, quero usar a matemática para algo.
Sexta feira, mais um dia normal de abraços e aborrecimentos. Não. Não é um dia normal. É hora de retribuir. Espero por isso há tanto tempo. Não consigo aguentar de tanta emoção contida. Quanta mágoa lacrada aqui dentro.  
O expediente dele acaba às 19 horas. Estou no carro com meus dois amigos Johnnie Walker e Jack Daniels. Somos amigos bem íntimos, sabe? Além de sermos cavalheiros. Misturo os dois e jogo por goela abaixo. Sinto meu corpo trepidar. Um abalo sísmico. Remorsos e emoções reunidas. Está tudo aqui. Uma loucura anatomofisiológica que me leva às alturas. Consigo sorrir ao limpar com as costas da mão algumas gotas que desciam pescoço abaixo. Olhe só para mim. Estou sorrindo com tanta facilidade que nem acredito. É hoje. Hoje é o dia.
Vejo aquele saco escrotal saindo porta afora, dando um último abraço e beijo no porteiro do apartamento. O porteiro retribui o carinho. Será que somente eu não consigo lidar com essa criatura infernal? Não importa. Não importa mais. Entrou no carro. Deu a partida. Saiu. Espero que tome uma distância, viro a chave e dou início à perseguição. Vejo que virou nas mesmas ruas de sempre. Parou nos mesmos semáforos. A velocidade dentro das normas de trânsito. Desgraçado metódico. Mas que se dane. Também sou metódico. Perceberam que venho o seguindo há algum tempo, né?  
Estamos nos aproximando do destino final. Meu coração dispara. Estou suando frio. Não é nervosismo. Só quero dar um fim para esse lixo. Um final feliz pra mim. Minhas mãos estão tremendo fervorosamente. Não me importo muito com a direção quando pego Jack. Tomo todo seu liquido celestial numa golada farta e única.
Três quadras antes de sua casa há um viaduto que ainda está sendo construído. Essa hora da noite não existe mais nenhuma alma viva para contar história. Nenhuma mesmo. Isso é magnífico, excitante e empolgante, não acha? Passo a quinta marcha e piso com toda a força que possuo no pé direito. O carro parece voar. Bato com força atrás dele. Rodopia como um peão alucinado. Sai da pista. Bate com tudo na mureta. O barulho foi estridentemente excêntrico.  
- HAHAHAHAHA – minha risada de triunfo. O serviço ainda não estava concluído. Paro o veículo no meio da pista. Dessa vez, bebo todo o conteúdo de Johnnie. Ninguém iria nos perturbar. Levo meus dois amiguinhos comigo. Todos estamos felizes. Passos largos e desajeitados. Parece que agora meu coração parou de bater. Não estou mais vivo. Nem sou mais humano. Sou apenas eu.
O capô de George está completamente destruído, juntamente com o motor e as duas rodas. Vejo que o idiota está com a cabeça pressionada contra o volante. Espero que não esteja morto. Com ferocidade, abro a porta amassada, retiro seu sinto e o derrubo no chão gelado. Não sei se está respirando ou não. Não me importa. Sou um arauto do prazer e vim trazer uma mensagem. Segurei Johnnie com a mão direita e Jack com a esquerda. É agora. É agora. É agora. Golpeei com força as duas garrafas em sua cabeçorra demoníaca. Uma. Duas. Três. Quatro. Cinco. SEIS. SETE. OITO. NOVE. DEZ. ONZE. NÃO CONSIGO PARAR. QUATORZE. QUINZE. DEZESSEIS. HAHAHAHA. VINTE. MORRE, DESGRAÇADO! ABRAÇA ISSO. BEIJA ISSO AQUI TAMBÉM... VINTE E NOVE...
Percebo que não encontro mais onde bater, porque aquele líquido grotesco está espalhado por todos os lados. Deito ao seu lado. Não consigo parar de rir. Acho que me mijei todo. Consigo levantar após alguns minutos. Meu corpo nunca suportou tanto prazer. Tanta beleza junta. Vou até o carro e saio daquele local de morte e de felicidades.
Na segunda feira quando retorno à empresa, sinto-me renovado. O mau humor que nutri dentro de mim por todos esses anos trabalhando ali, havia sumido. Consegui dar bom dia para os funcionários do prédio. Não encontrei um com aparência muito boa. Ora, eles estavam tristes? Fiz um favor para todos nós. Seres humanos são muito ingratos. Agora percebo isso.
Retorno à minha mesa e o trabalho continua. Mas não por muito tempo. Dois policiais, do nada, brotam em minha frente. Um deles segura uma arma. Rosto feio. Sem ânimo. Não entendo. Como pode ficar assim num dia tão belo?
- Senhor Alberto, você é acusado pela morte de George Oliveira de Castro. Deve permanecer calado e... – ele se interrompeu ao notar minha gargalhada. Os homens da lei se entreolharam, espantados.
- HAHAHAHA. Malditos sejam, Johnnie e Jack – comecei a falar – Deram com a língua no dente.


sábado, 21 de maio de 2016

Diário de um mágico de circo suicida



1º Dia
Sempre tive problemas com vícios. Quando criança, os jogos eletrônicos. Quando adolescente, meninas. Quando jovem, bebidas. Pensava que tudo era passageiro, sabe, aquela mania de momento, entretanto, o álcool veio para ficar, mesmo tentando outras as formas de distração. Mesmo quando virei noites e mais noites aprendendo truques de mágica na internet, dedicando-me ao máximo, sempre subia aquela sensação irritante vinda das costas, fazendo com que as mãos ficassem trêmulas, o coração disparasse e a dor de cabeça viesse com força total
Meu pai estaria orgulhoso de mim, afinal de contas, a maldita também fez parte de sua vida. Assim como eu, Mr. Fantástico – meu pai – era o mágico do circo da cidade e possuía muitos fãs, de crianças de colo até idosos. Todos amavam ver como tirava coelhos e cartas de chapéus, ou quando foi cerrado ao meio e sobreviveu para ser aplaudido. Mas num dia normal de apresentação, o grande mágico adentrou um tanque com água, sendo que precisava cortar as correntes que o prendiam. Bem, não conseguiu. Estava bêbado demais para lembrar-se de pressionar o feixe da corrente, libertando-o assim de sua prisão mortal. Lá se foi o grande Mr. Fantástico, que não era tão fantástico assim no final de tudo.
Um tanto quanto triste, não é? Quero seguir seus passos até nisso, graças a incapacidade de mudar minha vida. Mesmo sendo o mágico do circo da cidade e querido por muitas pessoas.
Grande parte do que ganhei depositei em bares por aí. “Mr. Cachaça” - muitos me chamavam assim ou – o apelido que eu mais gosto – Mr. Dormindo na calçada abraçado com um cachorro. As pessoas são criativas até para inventar apelidos ofensivos.
            Sei o que deve estar pensando de mim. “Nossa, que sujeito melodramático”. Talvez eu até seja, mas não me leve a mal e se coloque em meu lugar por alguns segundinhos. Cresci sem pai. Apanhava de outras crianças na escola. Minha mãe fugiu com outro homem, deixando suas dívidas para que seu filho pagasse. Meus tios e avós não queriam saber de mim, pelo menos até começar a ganhar dinheiro. A única coisa que me ama – as bebidas, no caso – me faz muito mal, a ponto de prejudicar meu único emprego. O motivo pelo qual o dono do circo ainda não me demitiu, é o respeito que tinha por meu pai.
            Então está decidido, vou acabar com essa porcaria que chamam de vida da melhor maneira possível: Num espetáculo. A melhor apresentação que farei. Preparei-me muito para isso, estudando novas mágicas e melhorando as antigas. Será uma noite e tanto. Estou contente por tomar essa decisão e você, por favor, não me repreenda com falsas ideologias, dizendo que o “amor pode salvar todas as coisas”. Não tenho nenhuma salvação e aceito este fato. Essas lágrimas descendo por meu rosto abaixo não querem dizer nada. É isso que quero e pronto.

            As arquibancadas estavam lotadas, graças às divulgações que fiz por toda a cidade. “A melhor apresentação de Mr. Sombrio” – as pessoas vieram em peso. Crianças, adultos, idosos, homens, mulheres estavam ali, observando tudo com cautela. O próximo truque seria o último. O último mesmo. Aquele que entraria para história – de novo. Ah, como quero ver suas expressões horrorizadas quando o sangue jorrar por todos os lados.
Deitei sobre um caixão aberto de madeira. Uma tampa jazia ao seu lado. Quando fosse colocada sobre o caixão, apenas minha cabeça e pés ficariam para fora. Sara, minha assistente de palco – uma linda mulher pelo qual eu era apaixonado e não tinha coragem de me confessar – pegou a tampa e a fechou. Desembainhou a espada que havia afiado por horas. Ela atravessaria meu ao meio. Agora sim. Estava sorrindo de orelha a orelha. Não tem mais volta.
- Senhoras e senhores, este será o grand finale e ficará marcado para sempre. – e como ficará. Deus, estou há meia hora sem beber, mas já sinto que preciso tomar mais daquele líquido divino – Aproveitem e observem como não há nenhum truque. Sara transpassará meu corpo com esta espada devidamente afiada, deixando o velho Mr. Sombrio dividido em duas partes. Será que ela será capaz de executar tudo com perfeição? – a platéia foi à loucura. Gritos e ovações.
- Está tudo pronto, senhor? – perguntou Sara, sem tirar o sorriso forçado do rosto, mesmo assim, estava radiante, esbelta, perfeita. Assenti que continuasse. Como queria dizer que a amava, no entanto, não merece um sujeito como eu. Um estragado.
Levantou a espada sobre a cabeça.
Fechei meus olhos. Em poucos segundos deixaria tudo para trás. As dividas, os problemas que tinha com o dono do circo, a bebida... Acabo de me lembrar que não tomei aquele uísque que comprei semana passada. Que se dane. Esse é o fim. Ouço o som de minha assistente fazendo força para levantar a espada e executar o corte perfeitamente.
Exibi os dentes num sorriso macabro de alguém que anseia a morte acima de tudo. A espada tocou o caixão. Eu ouvi, tenho certeza. Ouvi sim. Consigo dar uma última gargalhada. O suor descia por meu rosto e deixei a cabeça pender para baixo, estendendo os músculos do pescoço um pouco mais do que deveria. A platéia fez silêncio. Não consigo me segurar mais e uma gargalhada flui naturalmente. Acabou. Eu tenho certeza que acabou. Ela afasta o caixão partido ao meio pelo corte perfeito. Abro os olhos e vejo todos da platéia de pé, aplaudindo, gritando, vibrando com minha morte. Eu também vibraria, mas algo não estava certo.
- Viva o Mr. Sombrio! – uma voz infantil gritou ao longe.
Levantei a cabeça para ver o caixão partido, mas o incrível é que ainda sentia meus pés mesmo assim. Consegui balançar os dois e tudo parecia bem. Sara trouxe o pedaço onde estavam os membros inferiores e juntou ao pedaço que estavam os superiores. Tirou as trancas e... voilà. Intacto, sem nenhum corte ou sangue.
Em meio a toda aquela euforia, só pude pensar em uma única palavra.
- Merda...

2º Dia
Tentativa: morte por afogamento no tanque – igual papai.
Resultado: parecia respirar debaixo d’água.
Comentários: Fiquei ansioso de novo, mas não adiantou de nada. Droga...

3º Dia
Tentativa: morte por adagas atiradas.
Resultado: A mira de Sara ficou excelente, mesmo arremessando vendada.
Comentário: Não estava ansioso. Parecia que já sabia o que estava por vir. Raios...

4º Dia
Tentativa: morte por atropelamento pelo carro dos palhaços.
Resultado: a bebida que tomaram não foi forte o suficiente para embriagá-los.
Comentários: A intensidade com que bebo tem aumentado muito, entretanto, Sara estava ainda mais deslumbrante...

5º Dia
Tentativa: morte por queda livre ao andar na corda bamba.
Resultado: mesmo de olhos fechados e estando embriagado, não consegui cair. Quando me joguei, havia esquecido a rede embaixo.
Comentários: Sara continua linda...

10º Dia
Tentativa: Morte por envenenamento da picada de uma cobra, colocada dentro de um chapéu.
Resultado: A cobra não possuía veneno.
Comentário: Tenho conversado mais com ela...
...
14º Dia
Tentativa: Morto comido por um leão.
Resultado: O desgraçado do animal era adestrado. Não se fazem mais leões como antigamente.
Comentário: Conheci mais da vida de Sara. Contou-me como fora sua infância e eu retribuí fazendo o mesmo. Acho que ficou com pena de mim...
20º Dia
Tentativa: Morto pelos palhaços depois de provocá-los – calma aí, isso não é mágica.
Resultado: Um olho roxo e uma costela trincada.
Comentário: Sara cuidou de mim. Fez sopas trouxe alguns DVDs. Às vezes nós saímos para comer e faço de tudo para se divirta. Tem conversado comigo sobre tudo que acontece. Tivera uma infância sofrida contada anteriormente era uma mentira. Fiquei feliz por isso.
Estou feliz?
...
33º Dia
Tentativa: Não sinto mais vontade de me matar. Nem procurei algo que me fizesse passar dessa para uma melhor.
Resultado: Aproveitei o dia de folga e levei Sara num parque de diversões.
Comentário: Usava um vestido lilás e uma jaqueta jeans. Brincamos de pescaria e ganhei um ursinho de pelúcia. Bati na traseira do carrinho de bate-bate dela e nunca a vi rir tanto. Seu olhar era como o mar Grécia, límpido, claro e irrevogavelmente perfeito. O melhor de tudo, lá habitava a felicidade. Para terminar o dia, andamos na roda gigante e para minha surpresa, nos beijamos. O mundo parecia haver parado, como se nada importasse mais. Após o beijo, adentrei no mar perfeito e calmo que eram seus olhos e não conseguia encontrar mais retorno.
Não sentia mais vontade de beber.
...
50º Dia (qüinquagésimo)
Tentativa: Desde o 33º dia que comecei a escrever nesse diário, não bebo e não tento mais o suicídio.
Resultado: Minha alegria era genuinamente verdadeira.
Comentário: Estamos namorando. Essa mulher faz viajar com seus contos e romances que escreve – ela sonha em ser escritora e eu só sonho em estar com ela. Eu consegui descobrir que o amor consegue transpor todas as barreiras que existem, inclusive aquelas que me afundavam para o fundo do poço. Sinceramente não acredito que tentei tantas vezes tirar minha vida e, olha só isso, escrevi por cinquenta dias consecutivos num diário. Já é hora de abandonar isso e seguir em frente.

5 anos depois
Encontrei esse diário perdido numa das caixas de mudança. Faz três anos que mudamos para outra cidade. E olha só, nos casamos. É isso aí. Eu e Sara. Estamos muito felizes, sabe. Pensamos até em ter filhos. Abrimos nosso próprio circo e já contamos com algumas apresentações agendadas em outras cidades. Fora do estado também.
Aquele sujeitinho depressivo e seguro de si em querer se matar não existe mais. Sou um homem de negócios agora. Um empreendedor artístico e futuramente um pai de família. Amo tudo isso e quero muito mais.
Mas... não sei ao certo.  
Talvez esteja ficando um pouco doido. No começo do casamento as coisas eram mais bonitas e românticas. Porém, acho aquela paixão ardente tem esfriado. Já busquei diversas formas de apimentar a relação e a maioria delas foi fracassada. Passamos mais tempo organizando os afazeres do circo ou treinando para espetáculos que esquecemos o motivo que nos uniu. O amor
Acho que não sei o que mais isso. Tem muitas coisas que não me recordo bem. Diversas vezes fico forçando lembrar tudo o que passei antes de Sara. As bebidas, a loucura de ser solteiro, a falta de responsabilidade, a doçura fervente das bebidas. Espera, já disse isso antes? O que é tudo isso? Não compreendo.

Talvez com uma boa golada de uísque e uma tentava de suicídio, me recorde... 

terça-feira, 29 de março de 2016

Pesadelo em Gotham City



Ele estava parado em minha frente. Não sei como, mas conseguira invadir minha casa. Não me lembro de tê-lo convidado para nada. Sua presença era diabólica. Sua aura era de puro ódio e ressentimento guardado dentro de si. Suas vestes, negras como a noite. Não conseguia ver sua boca, mas ele tem orelhas altas e pontudas. De alguma forma, molhei minha calça. É vergonhoso, eu sei, mas o medo que entrava por entre cada poro de minha pele causou essa frouxidão na virilha.
- Onde ele está escondido?sua voz parecia vir de algum monstro de filme de terror, pois era grossa demais. Seus olhos negros estavam postos sobre mim.
- Já lhe contei a minha história? – argumentei. Ele ficou em silêncio.
Me chamo Frank, mas meus amigos me chamam de Caolho. Bom, não são bem amigos, para falar a verdade. Companheiros de trabalho, este termo é melhor. Este apelido vem do fato de minha pálpebra do olho direito ser mais fechada que a do esquerdo. Um pequeno erro de nascença. É claro que algo iria sair errado, afinal de contas, minha mãe era uma prostituta. Dançava em bares todas as noites e fazia sexo com caras em Motéis baratos. Logo você deve saber que sou um bastardo. Pois é, nunca conheci meu pai. Talvez sejam múltiplos pais, já que mesmo grávida, ela daria para qualquer um que pudesse lhe dar um bom trocado.  A desgraçada morreu quando eu tinha seis anos, graças a um belo câncer pulmonar. Muito obrigado, cigarro. Morei nas ruas de Gotham, já que não conhecia nenhum parente que me ajudasse a pelo menos me alimentar. Roubar pequenos biscoitos e outras besteiras de mercados. Era muito fácil. Essa foi minha vida até os quinze anos. Nessa idade, comecei a roubar carros e vendê-los.
As noites de Gotham eram sempre iguais. Frias e chuvosas. O cheiro pútrido de violência, lascívia e corrupção faziam parte do cotidiano. Ninguém ficava impune, desde empresários magnatas a velhos moradores de rua bêbados. Viva em Gotham City e com certeza você terá de conviver com isso. Certo dia, encontrei uma limusine belíssima que estava estacionada em frente a uma boate de luxo, umas das poucas que existem nessa merda de cidade. Sua cor era deveras diferente, sendo metade preta e metade branca. Não havia outra oportunidade melhor de subir na vida do que roubá-la e vender por um bom preço.
Foi o que fiz. Esgueirei-me por entre os carros que estavam estacionados perto do local e, com um pé de cabra enferrujado e meio torto, consegui entrar no veículo. Fiz uma ligação direta rapidamente. Era notável que meu coração estava mais do que aflito. Aquele carro era de alguém grande. Não tinha essa sabedoria na época.
Atravessei no meio de toda Gotham com aquele carro. Era incrível sua velocidade. Por apenas alguns minutos, me senti como um magnata. Conseguia sorrir e gargalhar, como uma criança com seu brinquedo novo. Levei a limusine para o contato que comprava os meus objetos furtados.
A expressão de horror do homem quando viu o carro era inominável. Suas rugas de expressão se contraíram de forma horrenda. A boca se abriu, revelando alguns dentes podres e obturações pretas. O cigarro caiu no chão molhado. A mão abria e se fechava descontroladamente.
- M-Ma... – as palavras lhe fugiam – Mas que bosta é essa?
- Isso é um carro, oras? – respondi – Um dos bens grandes. Vai lhe render uma boa gra...
- Seu idiota, estúpido. – deu passos pesados em minha direção. As poças d’água batiam em sua bota desgastada. Estendeu os braços e segurou meus ombros com extrema força – Leve isso de volta para o lugar que encontrou, sua besta. Vai matar a nós dois. 
- Do que você está falando, cara? – nunca havia visto tamanho pavor num homem daquela idade – Olha. – busquei argumentar – é só me dar o dinheiro e vai ficar tudo bem.
- Dinheiro?! – gritou ele. As gotas de chuva molhavam sua jaqueta jeans. Ergueu o braço para trás e golpeou-me com força no rosto, com as costas da mão. O tapa fora tão forte que caí sobre a perna direita, indo direto em cima de uma poça enorme. Minha única calça jeans agora estava enlameada. Olhei para o velho com horror, não era a primeira vez que apanhara na vida. Não, claro que não. O que me espantava era o horror do homem. O coração acelerou. A raiva batia às portas do desespero. Senti aquele gosto azedo do sangue em minha boca. Não há outro gosto no mundo igual ao sangue. Ele vem sem ser convidado, entra e não pede licença. 
- Que diabos há de errado com você, seu velho gagá?! – exclamei com todo ar que tinha nos pulmões. Todos os membros de meu corpo tremiam freneticamente.
- Você sabe de quem é esse carro? – segurou a gola de minha camisa puxando para cima, forçando-me a ficar de pé.
- De algum chefe de Máfia, eu suponho.
- Não, seu novato imbecil. Esse carro pertence ao Duas-Caras! – me puxou para mais próximo de seu rosto. Seu hálito tinha cheiro de sanduíche de anchovas e rum. Meus olhos se arregalaram, as pernas ficaram bambas, relaxei de tal forma que senti minha calça se molhar com urina. O coração batia muito forte, quase dava para ouvi-lo palpitar. Os dedos do pé se contorciam. Os pelos do corpo todo se eriçaram. As palavras não conseguiam ser formadas. Todo mundo em Gotham, sabe quem é o Duas-Caras. Antes um advogado dedicado, chamado Harvey Dent. Após um terrível acidente, metade de seu rosto foi queimado e ficou em carne viva. A morte de sua esposa ocorreu pela deficiência da polícia de Gotham em fazer a coisa certa. Harvey nunca esqueceu, seu trauma foi demasiadamente grande, ocasionando um distúrbio mental e criando uma dupla personalidade. Desde então, o ex-advogado vem cometendo sérios crimes, inclusive alguns extremamente ruins.
- Escute aqui e escute bem. – o homem agora sussurrava perto de meu rosto - Você vai entrar dentro deste carro e vai se mandar daqui agora.
- Po-Por... Por f-favor, me ajude – foi apenas o que consegui dizer, lágrimas quentes caíam em meio à gélida chuva. Segurei os pulsos do homem com força – Você precisa me ajudar. – gritei.
Outro tapa veio sem ser convidado, mas, dessa vez, meu corpo se manteve rígido e em pé. Cuspi um pouco de sangue e toda comida que havia em meu estômago, fora regurgitada. Vomitei ali mesmo, aos pés do comprador de objetos e coisas furtadas. Não consegui olhar para seu rosto, graças ao inclino do meu tronco, mas tenho certeza que seu rosto demonstrava medo, nojo e desaprovação.
Não houve muito tempo para demonstrar qualquer tipo de reação, pois, subitamente, três carros entraram no local abandonado, ferindo dezenas de meliantes que eram serviçais do comprador. Tiros de diferentes armas. Joguei-me no chão sem ter como reagir. Chorava feito uma criança, levando as mãos e tampando os ouvidos em meio a tantos barulhos.
O comprador se jogou no chão, para sua infelicidade, em cima de meu vômito. Proferiu milhões de palavrões. Não conseguia ouvir quase nada, mas algumas palavras ficaram em minha cabeça até hoje. “A gente já era, a gente já era”, gritava o velho em desespero. Era certeza que morreria naquele dia, mas não foi bem assim.
Os tiros cessaram. Os carros pararam de se mover. Vários capangas desceram de seus carros e nos cercaram. Dentre eles, havia uma limusine preta que estava parada um pouco atrás. Sua porta se abriu e um sujeito bem diferente desceu do carro.
Vestia um terno estranho, metade branco e metade preto com algumas fuligens e meio desgastado. A parte branca estava impecável, com um lenço vermelho sobre o bolso. O rosto era a coisa mais grotesca que vi em toda minha vida. Metade de seu rosto caucasiano estava totalmente destruída. A carne estava queimada e desgastada. As bordas do olho estavam vermelhas e bem dilatadas, além de não existir a pálpebra. Os lábios superiores e inferiores estavam mastigados. A arcada dentária estava à mostra. Pústulas rodeavam esse lado do rosto. Pequenas e grandes, não importa, eram muitas. Seu andar era arrogante, pois demorou alguns segundos para chegar até nós. Trazia consigo uma bengala de cor preta e uma moeda de cinquenta centavo, que jogava para cima com extrema cautela. O homem olhou para nós dois que estávamos no chão. O comprador respirava muito forte, mostrando pequenos ruídos ao final.
- Ora, ora, ora, o que temos aqui. – disse o homem de duas caras. Passou pelos seus guarda-costas que estavam mirando em nós dois com armas automáticas – Dois ratinhos assustados que pensam que podem roubar e vender meu carro favorito com tanta facilidade e...
-Harvey! – Duas-Caras fora interrompido. O velho comprador resolveu falar e sua voz soava de forma nervosa e descontrolada – Olha, cara. Não fui eu. Foi ele, foi ele. Esse desgraçado nem te conhece direito e já sai roubando suas coisas. Por favor, Harvey, tenha misericórdia. - O rosto do mafioso se escureceu em meio às trevas que a noite proporciona. O brilho de seus dentes amarelos era a única coisa que conseguia enxergar. Seu peito se estufou e sua respiração acelerou. Ele se aproximou do velho jogado no chão.
- Você que chamou do quê? – a voz, outrora um ruído estranho e fino, se tornara numa voz grossa e imponente.
-P-Pe..P-..Perd... – em meio ao gaguejar, o homem de duas caras agachou-se no chão, cerrou seu punho e o socou no nariz. Uma. Duas. Três. Quatro. Dez vezes sem parar. Seu nariz, outrora grande, estava totalmente quebrado e em carne viva. Ele gorgolejava sangue e seus olhos não conseguiam se abrir direito. Harvey Dent espumava uma saliva avermelhada, que passava por entre seus dentes amarelos e disformes, descendo pelo queixo e caindo em seu fino traje de duas cores. Lágrimas de sangue desciam pelo rosto do velho, que se esforçava apenas para respirar e manter a consciência. Senti muita pena naquele momento, mas o medo e a certeza da morte eram maiores do que tudo.
- Nunca... – exclamava Harvey Dent cerrando os dentes uns nos outros - Nunca me chame desse nome...
Levantou-se, chutou o queixo do comprador com o bico do sapato. Ouvi o barulho do osso se deslocar. Pisou com força no abdome e o levantou. Em pé e sem ar, ele buscou resistência de seus músculos da perna, mas não foi atendido. Caiu de joelhos, segurando o abdome, enquanto o sangue manchava o chão. Duas-Caras o olhou com nojo. Girou o tronco e chutou a têmpora direita. O homem tombou desnorteado e sem rumo.
Duas-Caras tomou fôlego.
- Eu já havia lhe dito, Jack. – esse era o nome do comprador – Não deveria ter tocado em minhas coisas. Jack ainda sem fôlego algum, fazendo uma força para permanecer são, tentava formar palavras e criar frases, mas apenas ouvia ruídos estranhos.
- Não tem nada a dizer? – Duas-Caras aproximou seu rosto do moribundo, mas nada ouviu – Bem, deixe que eu veja seu destino. – retirou uma moeda do bolso – Cara, você morre rapidamente. Coroa, vou lhe sedar com morfina ou qualquer outra droga que tiver, assim cortarei cada pedaço do seu corpo imundo e darei para meus cães. Sabe, eles vivem com muita fome.
Sorriu. O músculo queimado foi repuxado em meio ao sorriso torto e aberto na lateral. Ele jogou a moeda para cima. O tempo parecia haver parado. Divaguei. Diversos homens vestidos formalmente não passavam de capangas para Harvey Dent. O ex-advogado agora não passava de uma figura sombria e psicopata, que decidia o destino de suas vítimas baseado no resultado de uma brincadeira tão boba, como Cara e Coroa. O que mais me perturbava, era o sorriso maléfico do homem. Seu prazer em matar era notável. Pensei em tudo que havia feito até aquele momento. O irônico da sociedade é: temos frases e jargões para exemplificar casos e causos do ser humano. “A justiça sempre prevalece”, essa é uma de muitas frases que são utilizadas para dizer que a justiça sempre ganha no final. Onde está a justiça agora? “Servir e proteger”, é a frase mais dita por policiais que aparecem em canais abertos na televisão, mas onde estão esses “protetores” agora? Por que fazemos promessas que não conseguimos cumprir? Acho que posso afirmar. Ainda que esses policiais se empenhassem em proteger Gotham City, nós não aceitaríamos isso. Não existe justiça em Gotham, apenas corrupção, crimes, tristezas, mortes, esse é o ar que respiramos. Pisamos em poças de sangue todos os dias e não reclamamos. Em cada esquina da cidade há mendigos passando fome e mendigos usando droga, mas ninguém liga. Justiça aqui em Gotham é a mesma coisa que mitologia grega, ou seja, não existe, nem nunca existiu. Com apenas vinte anos de idade, eu consegui ver tudo isso de perto. As tristezas de cada um. A falta de importância que as pessoas dão para tudo. O engraçado de tudo isso, é que todos os seres humanos tenham um pouco de Frankenstein, pois criam seres para que possam odiá-los e chamá-los de erro. Gotham City cria bandidos, mafiosos e toda sorte de lixo, para assim, poder odiar e repudiar.
A moeda girou no ar e caiu na palma da mão. Ele fechou o punho e colocou a moeda em cima das costas da mão contrária. Soltou uma risada baixa e retirou a mão de cima. O sorriso se fechou e, novamente, seu rosto se escureceu. Virou as costas e se dirigiu para o capanga mais próximo, retirando a pistola de sua mão. Girou o tronco, mirou na cabeça do comprador e disparou. Uma. Duas. Três vezes. A vida o abandonou. O sangue foi derramado por todo o chão.
- Meus cachorros vão continuar com fome. – estava desapontado.
Sou o próximo.
Duas-Caras andou em minha direção. Seu rosto não indicava raiva, seu olhar não tinha aquele fogo assassino que observei enquanto batia no velho. Parecia algo mais parecido com curiosidade, do que vontade de matar. Eu estava deitado com a barriga no chão. Um dos capangas dele pisava em minhas costas para me manter no chão. Duas-Caras ficou de cócoras, o capanga retirou o pé, ele apertou meu pescoço com a mão e me fez levantar para que assim, pudesse olhar dentro de meus olhos. Sentia sua respiração quente em meu rosto. O hálito não era dos melhores. Me analisou por alguns minutos, como se quisesse descobrir como equalizar as cores do cubo mágico
- Não é possível... – agora sorria de maneira nervosa, talvez sarcástica – Não é possível que um pirralho feito você, tenha conseguido roubar o carro que eu mais gosto. – ao dizer essas palavras, pude sentir meu sangue gelar. Engoli em seco. Talvez meu sangue tenha parado de ser bombeado. Senti leves estalos nas veias e dores abdominais. O carro que ele mais gostava. Agora era certo. Eu iria morrer.
- Diga-me, pequeno gatuno. – ele continuava – Como um ladrãozinho pé de chinelo feito você, conseguiu roubar um carro tão icônico quanto o meu, sem ser visto por dezenas de capangas extremamente armados, cujo único maldito trabalho, era cuidar do carro? – ele apontou com a outra mão para todos os capangas ao redor.
As palavras não vinham. Mesmo sabendo que tinha uma tentativa de me redimir, não conseguia formular frases em meio ao terror.
- Vamos, garoto. – balançou meu corpo – Eu não tenho a noite toda, além de estar com um mau-humor terrível. – puxou a pistola que havia colocado dentro do paletó e colou o cano meio quente em minha têmpora direita. Meu olhar acompanhou o cano e o suor começou a descer mais rapidamente – Diga! – gritou.
-E-Eu...Eu... só... – “vou morrer”, pensava.
- Cinco, quatro... – ele começou a contar.
-É...Eu.. – “vou morrer, vou morrer, vou morrer”, a dor de cabeça era lancinante.
- Três, dois, um... – destravou a arma.
- A CULPA PERTENCE AOS SEUS CAPANGAS INUTEIS – gritei de olhos fechados – CONSEGUI ME ESGUEIRAR POR ENTRE TANTOS CARROS, ABRI A PORTA, FIZ A MALDITA LIGAÇÃO DIRETA E SAÍ COM O CARRO, SEM AO MENOS SER VISTO POR ESSES IMBECIS.
Silêncio.
O coração batia forte. A respiração estava pesada.
Nunca em toda minha vida esperava gritar com um mafioso, muito menos com o Duas-Caras. Eu conseguia ver um pouco de seu rosto, mesmo ele estando contra a luz. Não havia emoções nem nada parecido com isso. A boca estava fechada e aberta na outra lateral. Ele parecia não respirar. Seus olhos estavam esbugalhados, não de surpresa, pois nem ao menos piscava. As gotas da chuva desciam por sobre seu rosto. Ele abriu a boca, ameaçou dizer algo, mas voltou a fechar. Empurrou-me contra o chão. Caí de bunda no chão molhado, pude observá-lo puxar a pistola e apontar para o meu rosto. Ia fechar meus olhos, mas antes disso, pude vê-lo jogar ao ar a moeda novamente, em silêncio. A moeda caiu e ele fez o mesmo ritual. Fechei meus olhos ao ouvir o estralo da arma destravando. O medo se esvaiu quando disse todas aquelas verdades. Esse era o fim.
Bang. Vários tiros em sequência. Havia um intervalo de um segundo para cada bala que era disparada. A orquestra dos sons mortais era apreciada por mim, sua vítima. Talvez o medo houvesse cauterizado meus nervos, pois não sentia exatamente nada sendo rompido, nem nada parecido com isso. Talvez esse deveria ser mesmo o melhor para o mundo, afinal, quem sentiria falta de um vagabundo , ladrãozinho pé-de-chinelo, filho de uma prostituta.
Doze disparos, eu consegui contar. Meus dentes rangiam devido ao nervoso, o suor descia por meu pescoço abaixo e já não sabia diferenciar se estava molhado de chuva e mijo, ou se meu sangue tinha vazando tanto assim. Algo pesado caiu. Decidi que jogar meu tronco para trás era a melhor estratégia para morrer logo e não levar mais nenhum tiro gratuito.
            - Levante-se, garoto. – ele tornou a falar – Sua vida agora me pertence. – abri meus olhos e nunca pensei que veria tudo aquilo. Doze dos vários capangas que haviam entrado no local, estavam caídos no chão, inertes. Não havia outra explicação, todos os tiros que foram disparados não haviam me acertado, mas sim, todos aqueles homens.
            - Você é surdo, garoto. – Duas-Caras mudou a entonação de voz, deixando-a mais grossa e firme – Mandei você se levantar.
            - Por que? – foi tudo que consegui dizer em meio a tamanho massacre – Por que matou seus capangas ao invés de me matar?
            - Achou mesmo que eu iria querer esses capangas inúteis depois de ter deixado um ladrão de rua feito você, roubar meu carro mais precioso, bem debaixo dos olhos deles? – coçou o queixo e guardou a arma dentro paletó de duas cores. A arma estava descarregada – Bons capangas são difíceis de encontrar por aí, sabe? Você procura, procura, procura e sempre acha os mesmos tipos. São todos uns medrosos. Dizem por aí que tem medo do meu rosto. Me diga, garoto, há algo de errado com meu rosto? - É claro que havia, metade do rosto do homem estava totalmente queimado, sem pálpebra ou cabelo, só o músculo queimado.
            -N-Não, senhor. – engoli em seco, era uma mentira. Ele olhou dentro de meus olhos, se virou e andou na direção do carro que roubei.
            - Você agora me pertence. – afirmou como se tomasse algo para si – Será um dos meus capangas e eu irei treiná-lo para ser um servo “bom e fiel”. Algo contra isso? – o olho sem pálpebra e meio avermelhado me observou por sobre o ombro.
            - Não, senhor. – é claro que não iria negar – Serei seu melhor capanga.
            - Bom... – a partir daquele instante, minha vida melhorou, da pior maneira possível.
            O Duas-Caras é um criminoso e tanto, tráfico de drogas e armas são apenas umas das coisas em que é versátil, seu rol de crimes são bem piores. Fiquei responsável pela parte de contrabandear armas nas docas e trabalhei nisso por muitos anos. Até que algum maluco metido à vigilante decidiu limpar Gotham da criminalidade. Diziam que usava um traje de morcego. Um completo idiota.
            No começo, eu pensava que esse vigilante imbecil não iria sobreviver, afinal de contas, não existe só o Duas-Caras como “Rei do Crime”, há o Pinguim, um mafioso baixinho e gordo que andava estranho, mas seu poderio em Gotham era demasiadamente grande, assim como de muitos outros. Entretanto, ele não morreu e nem desistiu de Gotham. Isso era preocupante.
            Esse tal vigilante estava limpando a cidade, mas algo estava mudando e não era para melhor. O índice de criminalidade só aumentava. Com a chegada desse mascarado, outros criminosos começaram a aderir a máscaras e codinomes malucos. Charada, Dr. Hugo Strange, Homem-Calendário, Victor Zsasz, Bane, Hera Venenosa, Pistoleiro, Chapeleiro Maluco, todos esses caras começaram a surgir. Mas havia um sujeito que todos tinham medo de verdade. Um pavor que se acendia em todos os moradores de Gotham City, não apenas nos bonzinhos, se é que existe alguém assim aqui, mas também os maiores criminosos, mafiosos e contrabandistas.
            - O Coringa. – disse certa vez um dos meus capangas, podia chamá-lo assim porque já estava comandando alguns grupos isolados do chefe – Ele se esconde nas sombras. Tortura pessoas por prazer. Seu sorriso e insanidade não têm fim, o chefe precisa ter cuidado com esse cara. Ele não é normal.
            - Dizem que ele apareceu apenas por causa do mascarado. – outros diziam – Dizem que ele apenas quer brincar, e sua brincadeira envolve a morte de muitas pessoas. Sem contar na cidade toda pegando fogo.
            O coringa era uma lenda entre todos os criminosos da cidade. Um medo que a própria cidade produziu. Tinha vinte oito anos quando o Duas-Caras convocou uma reunião com todos seus “imediatos”. Eu era um deles na época. Nosso armazém ficava na parte sul de Gotham, onde pertencia aos mendigos e toda sorte de bandidos. O armazém estava abandonado, com teias de aranha, buracos por todos os lugares do teto. Cachorros se abrigavam ali dentro para se esconderem do frio.
            Era inverno em Gotham, e como sempre, o frio vinha causando muitos problemas nas docas. Não havia como navios saírem do local, pois o mar estava quase congelado, seria muito arriscado. Não fazia sentido colocar milhares de armamentos e drogas dentro de um navio e afundá-lo logo em seguida. O inverno era sempre mais duro para nossos lucros. Após tantos anos trabalhando na ilegalidade, você começa a nutrir certo respeito e paixão por aquilo que faz. Eu já administrava quatro grupos, com cinquenta homens ao todo. Com o Duas-Caras, minha vida avançou em níveis que nunca imaginei. Morava num bom apartamento, com a geladeira sempre cheia e a lareira acesa para esquentar os pés. Tinha até um roupão ridículo que todo rico besta tem.
            Estávamos sentados aguardando o chefe. Ele que precisava nos dizer o que estava acontecendo. Reuniões em meio ao inverno nunca eram normais. Havia algo de errado e isso estava me deixando louco. Já conseguia enxergar Harvey Dent como meu amigo, mesmo não sendo nada assim. Um amigo psicopata que te paga para contrabandear coisas e matar homens que davam problemas.
            Sentados na longa mesa da sala do subsolo no armazém, havia mais três homens junto comigo. Cada um cuidava de uma parte da cidade, afinal de contas, Gotham é muito grande. A segurança e negociações das docas era meu dever. A produção de toda sorte de drogas e a segurança dos lugares que as produziam, pertencia a John. A importação de armas ou equipamentos que as faziam, de Philip. Os subornos e auxilio da polícia de Gotham, de Oak.
            - Ele está demorando. – resmungou Oak – Nunca vi o chefe demorar tanto assim!
            - Caaaalma. – enfatizou John, que era o mais calmo de todos – O chefe deve ter pegado um trânsito e já já aparece. Hoje é véspera daquela festa lá, não é? Natal.
            - Ninguém merece o Natal – Philip girava uma pequena faca por entre os dedos da mão direita. Seu gênio extremista e totalmente radical, não ajudava muito nas negociações. “Philip” era seu apelido, seu nome eu desconheço até hoje. Sei que era russo, mas é só – As pessoas ficam enfeitando árvores como se fossem importantes para alguma coisa. Os moradores dessa cidade de merda, que não se importam com nada que não seja suas próprias bundas, se importarem com um homem que nasceu a sei lá quantos anos atrás. Qual o nome dele mesmo? Buda?
            - Jesus, cara. – me pronunciei em meio a tanta burrice – Como você pode ser um brutamonte tão ignorante?
            - Pelo menos sou um brutamonte, e você que nem braço tem direito! – todos riram. Éramos muito diferentes, mas nos divertíamos muito. A família que não tive quando mais novo, havia ganhado agora. Se as coisas que fizéssemos não fossem tão ruins, diria que foi algum tipo de deus que providenciou isso para mim. Ficamos sentados, conversando por mais de uma hora e nada do chefe aparecer. Em meio a tantas conversas e assuntos aleatórios, um silêncio se formou, como um medo crescente em cada um.
            - Chega! – disse John retirando uma arma do bolso – Ele nunca se atrasou para uma reunião.
            - Guarda essa arma, John. – Oak respondeu em tom de ordem – Sempre há uma primeira vez para tudo.
            - Não pense que manda em alguma coisa aqui. – argumentou Philip – Eu acho que devíamos... – súbito, ouvimos barulhos de tiros sendo disparados lá de fora. Não havia apenas nós quatro ali, mas também muitos dos capangas do chefe. Talvez os melhores. Os gritos de várias pessoas ressoavam em meio a dezenas de tiros de diferentes armas.
            - Mas que bosta está acontecendo aqui? – resolvi tirar a arma e me levantar, mas para nossa surpresa, a porta se abriu num tranco muito forte. Era um de meus capangas. A boca estava escancarada e parecia apenas sugar o ar, sem expeli-lo. Sua falta de cabelo na parte frontal da cabeça estava cheia de sangue, assim como sua camisa laranja, com gola pólo branca. O peito estufado. As mãos trêmulas. Os ombros arqueados e meio tortos. A parte direita de seu rosto estava machucada por alguma razão. Os olhos mais abertos do que nunca. A pupila dilatada.
            - Chefe! – ele se referia a mim, quase não conseguindo falar. Correu para dentro da sala e se ajoelhou aos meus pés me segurando com força – Ele está aqui, chefe. Ele existe, ele existe. Por favor, me ajude. Ele vai me pegar. Por favor. Por favor. Por favor...
            - Solte-me, homem! – gritei, Oak, John e Philip preparavam suas armas para sair da sala – O que está acontecendo lá fora?! – mais e mais tiros eram ouvidos, junto com toda a sorte de gritos. Mais de cem homens dentro daquele enorme armazém abandonado. Só poderia ter entrado um exército altamente armado.
            - Ele vai nos pegar, ele vai nos matar! – o homem chorava como uma criancinha. Ouvi meus amigos xingarem dezenas de palavrões e sentirem medo de sair porta afora. Quatro dos capangas mais perigosos do Duas-Caras não conseguiam sair do local por causa de um mero exército. Bem, era o que eu pensava, mas era pior que qualquer exército.
            Resolvi gritar ainda mais alto com o homem.
            - O que diabos está causando tudo isso? – só minha voz foi ouvida em meio ao silêncio que se formou subitamente. Todos olharam para mim e tremeram. John largou a arma no chão e caiu sentado. Philip queria apontar a arma, mostrando toda sua virilidade russa, mas não conseguia erguer os braços. Oak começou a ranger os dentes enquanto forçava suas pernas a se manterem em pé. Havia algo...
            - Q-Qu..Que d-d-d...Deu...s nos a-a-a-a-a..jude... – disse meu capanga por fim.
              - Deus não está aqui... Eu estou...
   O arrepio começou em minha última espinha. O medo era genuíno e diferente de qualquer outro que já senti. Nem quando quase morri baleado pelo chefe senti tanto medo. Não. Esse era algo muito diferente. Ele se igualava ao medo de quando se é criança e sente que algo pode agarrar seu pé vindo debaixo da cama ou do armário. Ou quando você está quase dormindo e sente seu corpo extremamente paralisado entre o mundo dos sonhos e o mundo real, onde vê dezenas de vultos passando ao seu redor, dançando uma valsa macabra e perversa. Girei a cabeça para o lado, tentando ver o que havia atrás de mim, mas os ossos, músculos e órgãos de todo meu corpo, pareciam não funcionar mais. Mesmo girando a cabeça para o lado, o movimento saiu devagar. Bem devagar. Muito devagar. Ele estava ali... Imerso nas trevas, e as trevas o preenchiam. As asas do morcego se abriram emitindo um vento que chegou a balançar meu cabelo de um lado para o outro, enquanto as pupilas se dilatavam ao máximo. Golpeou-me na têmpora direita com velocidade. Lembro-me de ver meus amigos puxando suas armas e atirando as cegas contra a escuridão, mas ele continuava avançando. As poucas luzes que tinham na sala piscavam de um canto para outro. O morcego dançava magistralmente em meio ao terror.
Tudo estava tão embaçado e eu já não entendia mais nada do que se passava. Fechei os olhos e desmaiei. Seu golpe fora tão forte que não consegui mover um membro de meu corpo. Não, não era por isso. Foi o medo que impôs sobre mim. O medo que impôs sobre todos nós, isso fez com que Philip não atirasse de primeira. Como um homem, ou sabe-se lá o que aquilo era, pode colocar medo em homens que já haviam visto o pior da vida, o pior de Gotham City. O sonho pareceu durar anos. Revi minha mãe, coisa que não fazia há muito tempo. As vezes que levava seu “trabalho” para casa. Olhava-me no espelho, onde tentava levantar minha pálpebra caída, que quase cobria meu olho. Mas as luzes do banheiro se apagaram. Uma luz avermelhada surgiu em meio às trevas. O morcego apareceu atrás de mim novamente. Sua aparência era mais demoníaca ainda. Suas asas se abriram e se fecharam ao meu redor. A bocarra mordia meu pescoço com vontade, arrancando a pele, músculo e tudo o que tinha direito. Gritei, esperneei, mas de nada adiantava. Senti que molhava minha calça.
Abri meus olhos, como se despertasse de um pesadelo que perdurou anos. Mas algo estava errado, meu corpo todo estava coberto por neve e, para piorar, estava todo amarrado com uma corda de aço preta. Ela prendia meus pés junto com minhas mãos, que por sua vez, estava presa em minhas costas. Senti uma forte dor de cabeça. O mundo girava. Para piorar, estava preso em frente à delegacia de polícia de Gotham City, não apenas eu, mas todos os cento e cinquenta capangas do Duas-Caras. Espalhados pela rua e calçada, todos bem presos e amordaçados. O prédio da delegacia era enorme, com pilastras gregas desgastadas em sua frente.
Queria gritar, correr, sair dali o mais rápido que pudesse, mas não era possível. O morcego nos pegou de jeito. Poucos minutos depois, vários dos policiais mais medrosos de Gotham saíram de dentro da toca e nos levaram para dentro. Fui preso e condenado por dezenas de coisas que nem lembro. Soube que Philip e muitos outros capangas foram trancafiados no asilo Arkham. Aquele lugar era amaldiçoado. Meu chefe, o Duas-Caras, não tinha sido encontrado. Passei dez anos da minha vida dentro de uma prisão, comendo da pior comida do mundo e riscando paredes, contando o tempo que estava ali.
Qualquer um teria ficado louco com as coisas que vi ali, mas eu não. Meu objetivo era apenas um, enfrentar meu medo e matar o morcego. Tentei várias vezes fugir da prisão, mas foram todas em vão. Os guardas me batiam com porretes e toda sorte de apetrechos para acalmar pessoas como eu. Alguns dos outros prisioneiros, que eram mais fortes e influentes ali dentro, me violentaram por dezenas de noites. Não somente eles, mas alguns guardas. Entravam em minha sela pela noite e faziam o serviço. Por muito tempo eu tentei ir contra, mas uma hora você desiste de tudo. Qualquer um teria ficado louco, mas eu não. Qualquer um teria ficado louco, mas eu não. Eu sou muito forte para ficar louco, hahahaha, eu sou muito forte. Não vou ficar louco nunca hahahahaha.
- Você já disse isso várias vezes, agora me diga.se aproximou de meu rosto, passando a mão por trás da minha cabeça e puxando meu cabelo com força para trás– Onde está o Duas-Caras?
- Já lhe contei como saí da cadeia? – sentado na cadeira, cuspindo sangue e sem sentir algumas partes de meu corpo, ainda tinha a capacidade de falar. O terror e medo que sentia por ele haviam sumido.
- Você não saiu da cadeia, Frank Caolho!sua voz continuava rouca, grossa e intimidadora como sempre – Nunca esteve nela.
- Como assim nunca estive na cadeia? – soltei pequenas risadas nervosas. Engoli em seco antes de falar novamente – Aqui é minha casa, depois de dez anos preso naquela maldita cadeia eu, eu, eu saí. Aqui é minha casa. Você está louco. Aqui é minha casa. Minha casa. Aqui sempre foi.
- Não se passaram nem dois meses que prendi você. – isso não pode ser verdade – Você não está na cadeia.
Girei a cabeça para todos os lados, tentei erguer o braço, mas estava envolto por uma camisa branca que me segurava por completo. A sala toda era preta, cheia de vidros e apenas uma pequena luz que vinha do alto. Onde é que estou? O que faço aqui? Cadê meu chefe? Minha mamãe? Onde estou?
- Você – indaguei, comecei a salivar pelas laterais da boca – Onde é que estou? O que você quer de mim? Por que me trouxe para cá? Onde, onde, onde, onde é que, que é, que, o que é que, eu, é...
- Frank – tornou a dizer Você está no asilo Arkham há exatos dois meses. Não houve dez anos em prisão alguma. Você está no tratamento intensivo a todo esse tempo. Agora preciso que me diga, onde está o Duas-Caras?
- Não, não é, hahaha, não, o louco é você hahahahahaha, você é o doido daqui hahahahahahahahahahahahahahaha – tornei a me debater, chorar e salivar muito. Os olhos giravam por toda a órbita. Ele me olhava por entre as trevas, com desgosto. Parei. A risada parou. A mente ficou branca e calma. Tornei a olhar em seus negros olhos, mas não por muito tempo, pois ele balançou a cabeça e virou suas costas. Abriu uma porta e pude ver sua forma. Era apenas um homem. Um homem vestido de preto, com uma fantasia de carnaval.
- Quem é você? – segurei o riso frouxo. Olhou por sobre o ombro.
- Eu sou o Batman.

 - Já lhe contei a minha história, Batman?