1º
Dia
Sempre
tive problemas com vícios. Quando criança, os jogos eletrônicos. Quando
adolescente, meninas. Quando jovem, bebidas. Pensava que tudo era passageiro,
sabe, aquela mania de momento, entretanto, o álcool veio para ficar, mesmo
tentando outras as formas de distração. Mesmo quando virei noites e mais noites
aprendendo truques de mágica na internet, dedicando-me ao máximo, sempre subia
aquela sensação irritante vinda das costas, fazendo com que as mãos ficassem trêmulas,
o coração disparasse e a dor de cabeça viesse com força total
Meu
pai estaria orgulhoso de mim, afinal de contas, a maldita também fez parte de
sua vida. Assim como eu, Mr. Fantástico – meu pai – era o mágico do circo da
cidade e possuía muitos fãs, de crianças de colo até idosos. Todos amavam ver
como tirava coelhos e cartas de chapéus, ou quando foi cerrado ao meio e
sobreviveu para ser aplaudido. Mas num dia normal de apresentação, o grande
mágico adentrou um tanque com água, sendo que precisava cortar as correntes que
o prendiam. Bem, não conseguiu. Estava bêbado demais para lembrar-se de
pressionar o feixe da corrente, libertando-o assim de sua prisão mortal. Lá se
foi o grande Mr. Fantástico, que não era tão fantástico assim no final de tudo.
Um
tanto quanto triste, não é? Quero seguir seus passos até nisso, graças a
incapacidade de mudar minha vida. Mesmo sendo o mágico do circo da cidade e querido
por muitas pessoas.
Grande
parte do que ganhei depositei em bares por aí. “Mr. Cachaça” - muitos me
chamavam assim ou – o apelido que eu mais gosto – Mr. Dormindo na calçada
abraçado com um cachorro. As pessoas são criativas até para inventar apelidos
ofensivos.
Sei o que deve estar pensando de
mim. “Nossa, que sujeito melodramático”. Talvez eu até seja, mas não me leve a
mal e se coloque em meu lugar por alguns segundinhos. Cresci sem pai. Apanhava
de outras crianças na escola. Minha mãe fugiu com outro homem, deixando suas
dívidas para que seu filho pagasse. Meus tios e avós não queriam saber de mim,
pelo menos até começar a ganhar dinheiro. A única coisa que me ama – as
bebidas, no caso – me faz muito mal, a ponto de prejudicar meu único emprego. O
motivo pelo qual o dono do circo ainda não me demitiu, é o respeito que tinha
por meu pai.
Então está decidido, vou acabar com essa
porcaria que chamam de vida da melhor maneira possível: Num espetáculo. A
melhor apresentação que farei. Preparei-me muito para isso, estudando novas
mágicas e melhorando as antigas. Será uma noite e tanto. Estou contente por
tomar essa decisão e você, por favor, não me repreenda com falsas ideologias,
dizendo que o “amor pode salvar todas as coisas”. Não tenho nenhuma salvação e aceito
este fato. Essas lágrimas descendo por meu rosto abaixo não querem dizer nada. É
isso que quero e pronto.
As arquibancadas estavam lotadas, graças
às divulgações que fiz por toda a cidade. “A melhor apresentação de Mr.
Sombrio” – as pessoas vieram em peso. Crianças, adultos, idosos, homens,
mulheres estavam ali, observando tudo com cautela. O próximo truque seria o
último. O último mesmo. Aquele que entraria para história – de novo. Ah, como
quero ver suas expressões horrorizadas quando o sangue jorrar por todos os
lados.
Deitei
sobre um caixão aberto de madeira. Uma tampa jazia ao seu lado. Quando fosse
colocada sobre o caixão, apenas minha cabeça e pés ficariam para fora. Sara,
minha assistente de palco – uma linda mulher pelo qual eu era apaixonado e não
tinha coragem de me confessar – pegou a tampa e a fechou. Desembainhou a espada
que havia afiado por horas. Ela atravessaria meu ao meio. Agora sim. Estava
sorrindo de orelha a orelha. Não tem mais volta.
-
Senhoras e senhores, este será o grand finale e ficará marcado para sempre. – e
como ficará. Deus, estou há meia hora sem beber, mas já sinto que preciso tomar
mais daquele líquido divino – Aproveitem e observem como não há nenhum truque.
Sara transpassará meu corpo com esta espada devidamente afiada, deixando o
velho Mr. Sombrio dividido em duas partes. Será que ela será capaz de executar
tudo com perfeição? – a platéia foi à loucura. Gritos e ovações.
-
Está tudo pronto, senhor? – perguntou Sara, sem tirar o sorriso forçado do
rosto, mesmo assim, estava radiante, esbelta, perfeita. Assenti que
continuasse. Como queria dizer que a amava, no entanto, não merece um sujeito
como eu. Um estragado.
Levantou
a espada sobre a cabeça.
Fechei
meus olhos. Em poucos segundos deixaria tudo para trás. As dividas, os problemas
que tinha com o dono do circo, a bebida... Acabo de me lembrar que não tomei
aquele uísque que comprei semana passada. Que se dane. Esse é o fim. Ouço o som
de minha assistente fazendo força para levantar a espada e executar o corte
perfeitamente.
Exibi
os dentes num sorriso macabro de alguém que anseia a morte acima de tudo. A
espada tocou o caixão. Eu ouvi, tenho certeza. Ouvi sim. Consigo dar uma última
gargalhada. O suor descia por meu rosto e deixei a cabeça pender para baixo,
estendendo os músculos do pescoço um pouco mais do que deveria. A platéia fez
silêncio. Não consigo me segurar mais e uma gargalhada flui naturalmente.
Acabou. Eu tenho certeza que acabou. Ela afasta o caixão partido ao meio pelo
corte perfeito. Abro os olhos e vejo todos da platéia de pé, aplaudindo,
gritando, vibrando com minha morte. Eu também vibraria, mas algo não estava
certo.
-
Viva o Mr. Sombrio! – uma voz infantil gritou ao longe.
Levantei
a cabeça para ver o caixão partido, mas o incrível é que ainda sentia meus pés
mesmo assim. Consegui balançar os dois e tudo parecia bem. Sara trouxe o pedaço
onde estavam os membros inferiores e juntou ao pedaço que estavam os
superiores. Tirou as trancas e... voilà.
Intacto, sem nenhum corte ou sangue.
Em
meio a toda aquela euforia, só pude pensar em uma única palavra.
-
Merda...
2º
Dia
Tentativa:
morte por afogamento no tanque – igual papai.
Resultado:
parecia respirar debaixo d’água.
Comentários:
Fiquei ansioso de novo, mas não adiantou de nada. Droga...
3º
Dia
Tentativa:
morte por adagas atiradas.
Resultado:
A mira de Sara ficou excelente, mesmo arremessando vendada.
Comentário:
Não estava ansioso. Parecia que já sabia o que estava por vir. Raios...
4º
Dia
Tentativa:
morte por atropelamento pelo carro dos palhaços.
Resultado:
a bebida que tomaram não foi forte o suficiente para embriagá-los.
Comentários:
A intensidade com que bebo tem aumentado muito, entretanto, Sara estava ainda
mais deslumbrante...
5º
Dia
Tentativa:
morte por queda livre ao andar na corda bamba.
Resultado:
mesmo de olhos fechados e estando embriagado, não consegui cair. Quando me
joguei, havia esquecido a rede embaixo.
Comentários:
Sara continua linda...
10º
Dia
Tentativa:
Morte por envenenamento da picada de uma cobra, colocada dentro de um chapéu.
Resultado:
A cobra não possuía veneno.
Comentário:
Tenho conversado mais com ela...
...
14º
Dia
Tentativa:
Morto comido por um leão.
Resultado:
O desgraçado do animal era adestrado. Não se fazem mais leões como antigamente.
Comentário:
Conheci mais da vida de Sara. Contou-me como fora sua infância e eu retribuí
fazendo o mesmo. Acho que ficou com pena de mim...
20º
Dia
Tentativa:
Morto pelos palhaços depois de provocá-los – calma aí, isso não é mágica.
Resultado:
Um olho roxo e uma costela trincada.
Comentário:
Sara cuidou de mim. Fez sopas trouxe alguns DVDs. Às vezes nós saímos para
comer e faço de tudo para se divirta. Tem conversado comigo sobre tudo que
acontece. Tivera uma infância sofrida contada anteriormente era uma mentira.
Fiquei feliz por isso.
Estou
feliz?
...
33º
Dia
Tentativa:
Não sinto mais vontade de me matar. Nem procurei algo que me fizesse passar
dessa para uma melhor.
Resultado:
Aproveitei o dia de folga e levei Sara num parque de diversões.
Comentário:
Usava um vestido lilás e uma jaqueta jeans. Brincamos de pescaria e ganhei um
ursinho de pelúcia. Bati na traseira do carrinho de bate-bate dela e nunca a vi
rir tanto. Seu olhar era como o mar Grécia, límpido, claro e irrevogavelmente
perfeito. O melhor de tudo, lá habitava a felicidade. Para terminar o dia,
andamos na roda gigante e para minha surpresa, nos beijamos. O mundo parecia
haver parado, como se nada importasse mais. Após o beijo, adentrei no mar
perfeito e calmo que eram seus olhos e não conseguia encontrar mais retorno.
Não
sentia mais vontade de beber.
...
50º
Dia (qüinquagésimo)
Tentativa:
Desde o 33º dia que comecei a escrever nesse diário, não bebo e não tento mais
o suicídio.
Resultado:
Minha alegria era genuinamente verdadeira.
Comentário:
Estamos namorando. Essa mulher faz viajar com seus contos e romances que
escreve – ela sonha em ser escritora e eu só sonho em estar com ela. Eu
consegui descobrir que o amor consegue transpor todas as barreiras que existem,
inclusive aquelas que me afundavam para o fundo do poço. Sinceramente não
acredito que tentei tantas vezes tirar minha vida e, olha só isso, escrevi por
cinquenta dias consecutivos num diário. Já é hora de abandonar isso e seguir em
frente.
5
anos depois
Encontrei
esse diário perdido numa das caixas de mudança. Faz três anos que mudamos para
outra cidade. E olha só, nos casamos. É isso aí. Eu e Sara. Estamos muito
felizes, sabe. Pensamos até em ter filhos. Abrimos nosso próprio circo e já
contamos com algumas apresentações agendadas em outras cidades. Fora do estado
também.
Aquele
sujeitinho depressivo e seguro de si em querer se matar não existe mais. Sou um
homem de negócios agora. Um empreendedor artístico e futuramente um pai de
família. Amo tudo isso e quero muito mais.
Mas...
não sei ao certo.
Talvez
esteja ficando um pouco doido. No começo do casamento as coisas eram mais
bonitas e românticas. Porém, acho aquela paixão ardente tem esfriado. Já
busquei diversas formas de apimentar a relação e a maioria delas foi
fracassada. Passamos mais tempo organizando os afazeres do circo ou treinando
para espetáculos que esquecemos o motivo que nos uniu. O amor
Acho
que não sei o que mais isso. Tem muitas coisas que não me recordo bem. Diversas
vezes fico forçando lembrar tudo o que passei antes de Sara. As bebidas, a
loucura de ser solteiro, a falta de responsabilidade, a doçura fervente das
bebidas. Espera, já disse isso antes? O que é tudo isso? Não compreendo.
Talvez
com uma boa golada de uísque e uma tentava de suicídio, me recorde...
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