-Irmã. –Thorque
rompeu o silêncio noturno - Eu tenho uma dúvida. - A enorme bárbara tentava
amolar seu machado com uma pedra irregular. Algo nada recomendável. De tempos
em tempos, segurava para trás seu cabelo, que insistia em cair na frente do
rosto.
- Você poderia
ir dormir e parar de encher meu saco, não é? – Dhagar, que estava deitada e
pronta para dormir, respondeu com aspereza.
- Não, é
sério! – havia realmente um tom de dúvida em sua voz fina, como de uma gralha
que havia acabado de levar uma porrada. Pelo menos Dhagar pensava dessa forma –
Já se perguntou como vamos conseguir terminar essa missão?
A outra bárbara
retirou o cobertor feito por vários pelos de animais, sentou-se no pequeno
lençol em que estava deitada e coçou a testa com seus dedos finos, mas
calejados. Sabia que Thorque não era o ser mais inteligente do planeta – nem
ela mesma era – mas resolveu deixar seu sono um pouco de lado e atender aos
questionamentos de sua irmã mais nova.
- O que é
dessa vez, Thorque? – bocejou.
- Você já se
perguntou como vamos matar o tal do Rei das catacumbas? – deixou o machado de
lado. Dhagar fez uma mensura que iria responder, mas pensou bem antes de soltar
qualquer palavra.
- O que você
quer dizer com isso?
- Como é que vamos
matar um morto-vivo, sendo que ele está morto e ao mesmo tempo vivo? – a dúvida
parecia ser algo inútil, mas Dhagar não conseguiu responder de primeira. Nem de
segunda. Não conhecia ninguém que matou um morto-vivo antes – muito menos
chegou a conhecer um morto-vivo – isso deixou a guerreira com certa pulga atrás
da orelha.
- Bah! – exclamou
depois de tanto pensar e não encontrar respostas. Dhagar odeia mistérios e tudo
que a faça ficar dando voltas em pensamentos, sem encontrar qualquer resposta –
Arrancamos a cabeça e duvido que volte a viver de novo. Só isso.
- Verdade... –
Thorque respondeu, mas seu tom de voz indicava que ainda queria pensar mais.
Outro silêncio
se fez.
- Mas se está
morto, como vamos matá-lo de novo? – ela não conseguia deixar de pensar naquela
loucura, na verdade, voltar à vida depois de morrer era mesmo uma loucura –
Arrancar a cabeça de um morto-vivo não mudaria muita coisa, afinal de contas,
para quê ele precisa de uma?
- Você pensa
demais, irmã. Larga esse machado, deita perto da fogueira e se aquece um pouco.
Amanhã sairemos dessa maldita floresta e conseguiremos matar o Rei do
não-sei-o-que.
- Tem razão,
irmã. – Thorque olhou para o céu noturno. Avistou milhares de estrelas, uma
junta das outras e algumas mais afastadas também. Observou Cainé e Guilna, as
duas estrelas maiores que iluminavam todas as noites daquele pequeno mundinho.
- Dhagar... –
prosseguiu ela, sem ter receio de levar um tabefe bem dado de sua irmã mais
velha.
- Hum... –
resmungou Dhagar, não tendo a decência de abrir a boca.
- Será que
mamãe e papai estão em Cainé? – isso fazia parte da crença de Teóryan, uma
religião que dominava aquela região. Quando alguém morria e possuía uma alma
“pura”, iria morar em Cainé com os deuses. Aqueles que morriam sendo “ruins”
iriam para Guilna, pagar pelos seus erros eternamente. No entanto, Dhagar não
era o tipo de mulher religiosa. Não acreditava em nada, muito menos em deuses.
Sua falta de crença era quase um trauma, já que seus pais haviam sido mortos
quando tinha apenas dez anos de idade. Um grupo de trolls havia invadido sua
antiga vila e dizimado quase todos os moradores, restando apenas as duas.
Sozinha, conseguiu matar três grandes trolls e fugir levando Thorque, que
chorava muito por assistir tamanha brutalidade. Se existia algo que mais amava
em todo mundo, era Thorque.
Ainda muito
nova, precisou lutar contra a miséria do reino, tendo que guerrear em arenas
para levar comida para sua casa. Furtava algumas frutas, legumes e pães. Matava
alguns pássaros e, com quase todo o dinheiro, comprava água quase potável para
não morrerem de sede. Mesmo passando por tantas dificuldades, sua irmãzinha
nunca reclamou, sempre lhe agradecendo por tudo que fazia. Dizia que um dia
retribuiria e a ajudaria a ganhar dinheiro. Thorque queria que fossem ricas e
pudessem ajudar os mais necessitados.
Quando Dhagar fez
quinze anos, se alistou no exército da cidade, se destacando como uma excelente
lutadora. Logo, começou a prosperar e isso perturbou alguns senhores da
burguesia. Como uma criaturinha que morava nas ruas da cidade poderia, quem
sabe, liderar um dos exércitos? Não apenas isso, mas como uma mulher poderia
fazer tais coisas? Liderar homens? Por essa causa, nunca deixou de ser uma
recruta.
Anos depois,
Thorque também se uniu ao exército e demonstrava as mesmas habilidades
marciais. As irmãs conseguiam vencer, nos treinos, todos os outros soldados.
Certa vez, derrotaram facilmente dois dos comandantes mais fortes, algo que prejudicou
muito suas reputações. Foram acusadas de traição contra o reino e seu soberano
e foram condenadas à morte. Não aceitando isso, iniciaram um motim contra os
líderes políticos da cidade, juntando vários outros homens e mulheres nessa
cruzada. Muitos foram os mortos, no entanto, conseguiram uma vitória. Dhagar e
Thorque mataram o líder da cidade e distribuíram os bens por entre todos os
habitantes. A pequena cidade foi considerada como fora do domínio do Rei Horan,
ou seja, uma cidade de bárbaros. Para que pudessem sustentar seu povo
tornaram-se mercenárias – as melhores – sendo contratadas por vários senhores
de outros reinos. A fama das duas irmãs correu por todo o mundo.
Há poucos dias
atrás, um homem foi ao encontro das duas para contratá-las. Ele as regulava de cima embaixo. Dhagar, sem paciência
alguma, queria entender o motivo de tamanha curiosidade.
- Perdeu
alguma coisa no meu corpo, vovô?
- Oh, me
perdoe, bela dama, é que... – ele se interrompeu.
- É que? –
Thorque prosseguiu.
- É que pelos
seus nomes, imaginava que fossem... homens. – uma veia de irritação apareceu na
testa da guerreira mais velha. Não era a primeira vez que foram confundidas com
homens por conta de seu nome pouco comum entre as mulheres. Dhagar odiava
depender de qualquer um, seja homem, mulher ou outra raça que seja. Apoiou o
antebraço sobre a mesa, batendo com a caneca de madeira, esparramando um pouco
de hidromel.
- Tem algum
problema com mulheres? – se ele tivesse, com certeza o mataria ali mesmo.
- Não, bela
dama. – sua educação era um misto de reverências e temor – Gostaria de
contratá-las para uma tarefa... peculiar.
- E qual seria
esta tarefa? Quer que matemos um grão-orc? Ou seria um sereano? Isso poderia
custar bem caro...
- Vocês
matarão o Rei Morto-Vivo! – silêncio. Dhagar abriu a boca. Thorque se aproximou
mais. Achou que o vovô esquisito estivesse brincando.
- Como é que é
o negócio? – perguntou Dhagar ao contratante – Está nos pedindo para matar um
morto?
- Não. –
respondeu o senhor de idade quase fazendo força para terminar a frase – É um
morto-vivo!
- E o que
seria um morto-vivo? – Thorque também estava confusa.
- Vocês nunca
viram um? – indagou o velho, sendo respondido no mesmo momento pelo balançar
negativo da cabeça das guerreiras. Tomou fôlego – Um morto-vivo é um
experimento de bruxo necromante. Ele procura
cadáveres por aí e, com alguma magia profana, trás de volta para vida o sujeito
“afortunado”. Então o morto se torna um servo do homem que o invocou. Porém, não
foi bem assim que aconteceu.
- E o que
aconteceu então? – os olhos de Thorque estavam arregalados, como se estivesse
adentrando verdadeiramente na história. Sempre fora apaixonada por estórias,
lendo dezenas de livro ou cantando juntamente com os bardos de sua vila. Era
diferente de sua irmã, que só pensava em treinar e batalhar.
- Existia um
necromante em minha vila. Era um sujeitinho repugnante, sempre longe de nós,
morando numa velha masmorra que comprou por um preço razoável. Ninguém gostava
dele, de fato, mas nós o respeitávamos. Uma das leis que temos em Rhodavir é
sempre respeitar as crenças e práticas dos outros, desde que essa prática não
perturbe a paz de nossa nação.
- Pois bem. –
prosseguiu o velho, coçando as costas com os dedos quase em carne viva – Não
era muito frequente ver o sujeito por aí, estando sempre confinado em sua
moradia maldita. Certo dia, mais ou menos há quatro anos, numa noite fria e
morta, uma luz verde emergiu do lugar onde ficava sua masmorra. Toda a
construção veio ao chão e o sujeito nunca mais foi visto. Apenas a criatura que
ele conjurou das profundezas. Um enorme ser, com quase quatro metros de altura,
saiu do local, carregando uma enorme espada e um cajado mágico, que brilhava
ameaçadoramente. Nossos guardas tentaram abater a criatura mórbida e foram
mortos brutalmente. Não possuíamos mais defesas. Então, a criatura metade
humana e metade esqueleto, com vários órgãos caindo para fora do corpanzil e sangue
negro escorrendo por todo o corpo, ordenou que nós pagássemos impostos por
nossas vidas e governaria toda Rhodavir sem qualquer questionamento. Muitos
foram contra e hoje já não estão mais entre nós. Bem, até estão, mas também são
mortos-vivos.
- Já ouvi
falar de Rhodavir. – a guerreira mais velha o interrompeu – Vocês possuíam uma
riqueza enorme. As histórias diziam que perderam essa riqueza por causa de uma
onda de doenças no local.
- Essas
doenças nos assolam até hoje, nobre dama. – agora o velho coçava o rosto e um
fio de sangue desceu por sobre a testa– Todos nós estamos doentes e com certeza
morreremos. Tudo isso graças à energia pútrida que sai desse desgraçado.
Dhagar levou a
mão ao queixo em tom pensativo e, de fato, não gostava muito de pensar em
questões extremamente complicadas como essa. Nunca havia enfrentado um
morto-vivo, muito menos sabia qual era sua aparência, nem nada do gênero. Acabou
aceitando a oferta do homem, que em meio a lágrimas, agradeceu. Thorque sabia
que aquele indivíduo não voltaria para Rhodavir com vida.
Agora, deitada
em meio à luz das estrelas-mães, buscava lembrar-se do rosto de seus pais, uma
tarefa que se tornou extremamente complexa ao longo dos ínfimos segundos que
Thorque havia feito aquela pergunta.
- Sabe que não
acredito nisso... – Dhagar tinha certo pesar na voz. A morte dos pais se tornou
um tabu em todos esses anos. Elas nunca conversavam sobre isso, nem nada
parecido – Cainé, Guilna... não passam de baboseiras...
- É, eu sei...
– Thorque se contentou com a resposta curta e grossa da irmã. Virou para o
lado, buscando afastar os olhos das luzes das estrelas que estavam sobre as
duas, observando-as e, quem sabe, até mesmo cuidando.
Rhodavir era
realmente uma cidade de merda. Uma cidade rodeada por um muro gigante de
pedras. As bárbaras estavam no portão. Um guarda estava parado na frente das
duas, segurando uma espada e a outra aberta, como se pedisse algo. Thorque
sentiu o café da manhã querer retornar para fora de seu corpo ao sentir o
cheiro deteriorado de homem.
O guarda
possuía uma cota de malha extremamente destruída, sendo segurada por apenas uma
alça no ombro direito. Várias marcas de corte por todo o corpo davam um
contraste mortal à criatura. Metade de seu rosto era puro osso, com resto de
músculos que caíam pelo chão. Vermes comiam metade do seu coro cabeludo e
estavam espalhados por todos os cortes do corpo. Outrora fora um humano comum,
agora, uma aberração do mais profundo abismo.
- Onde estão
suas autorizações? – perguntou o cadáver ambulante. Elas não tinham palavras
para responder de imediato – Onde estão?
- Não precisa
repetir, nós entendemos sua língua. – Dhagar enfiou o braço dentro da bolsa
feita de couro de tigre-colosso e entregou em suas mãos dois pergaminhos. O
indivíduo observou as informações contidas ali, que não passava de uma
falsificação. Avaliava com apenas o único olho “bom” que possuía. O único que
não tinha vermes em suas extremidades comendo sua córnea.
- Isso aqui é
falso! – afirmou o sujeito cadavérico com veemência. Thorque engoliu em seco.
- Falso? –
Dhagar fingiu surpresa, e todos sabemos que ela é ótima com mentiras – Meu
nobre Senhor, não está vendo o carimbo perfeito de vossa majestade, o Rei Horan
– o indivíduo aproximou novamente sua cabeça grotesca dos cartões.
- É falso,
pensa que me engana forasteira? – ele coçou a axila direita com os dois cartões
e novamente Thorque quase vomitou.
- Como ousa
falar assim com uma mensageira de vossa majestade, Rei do oeste e Senhor dos
Dragões negros e brancos de todo o reino? – se referia ao Rei Horan. O guarda
regulou as irmãs bárbaras da cabeça aos pés. Ambas vestiam poucas roupas.
Dhagar trajava um protetor de seios de couro, junto com uma saia rasgada na
frente para lhe dar agilidade nas pernas bem torneadas e fortes. Os cabelos
ruivos claros soltos ao vento. A espada estava presa nas costas. Thorque, por
sua vez, vestia uma capa curta que protegia seus seios, mas deixava seu abdome
amostra. A saia curta era feita de couro, junto com as longas botas de aço.
Apoiava o machado sobre o ombro esquerdo, segurando com suas luvas de couro com
detalhes de aço. Diferentemente de sua irmã, os longos cabelos ruivos eram mais
escuros e algumas mechas estavam presas por presilhas feitas por algumas crianças
de sua cidade. O guarda sentiu-se intimidado pelas grandes mulheres.
- Você –
retornou a falar – Uma mensageira de Horan? – o cadáver gargalhou. O som era
realmente muito grotesco – Escuta aqui. Que tal você dar meia volta, antes que
eu enfie essa lança no seu rabo gigante e te rasgue por inteira. Não somos de
brincadeiras fúteis em Rhodavir. Vá embora daqui. Agora.
- Nobre
Senhor, peço-lhe humilde respeito aos serviçais de vossa majestade. – Dhagar
prosseguiu mesmo assim – Sabemos que o reino precisa de mais pessoas como vossa
senhori... – a cabeça do guarda morto-vivo agora pairava no chão e perto aos
pés de Dhagar. O corpo pendeu para trás e se espatifou, fazendo um baque
abafado no chão.
- Mas que
merda foi essa? – a pergunta foi direcionada para Thorque – Achei que o plano
fosse manter a discrição e matar apenas o Rei!
- Acha mesmo
que nos deixarão sair daqui após a morte do Rei? – Thorque limpava o machado
com um pano branco que estava levando. Fez uma careta. Estava com muito nojo –
Se existem mais seres grotescos como esse, devemos matar todos.
- É, faz
sentido. – concluiu Dhagar.
Passaram pelo
portão. Várias casas e casebres enfeitavam a cidade e, pelo menos a maior parte
delas, era feita de madeira praticamente podre. Os tetos eram de palhas ou
barro. O chão não era sólido, mas sim, uma massa escura, estranha e barrenta. A
cidade de Rhodavir era conhecida por sua riqueza e por sua vasta dimensão. Bom,
pelo menos era assim, no entanto, agora não passava de um pequeno vilarejo e
não era tão vasto assim. Algumas pessoas estavam fazendo suas atividades
diárias e quase não repararam nas duas mulheres. Suas roupas eram quase trapos
e muitas delas até mesmo cheiravam mal. Uma mulher estava de cócoras com uma
vasilha de barro, dando algum tipo de comida para uma criança quase
esquelética. Thorque sentiu uma imensa raiva de tudo aquilo que estava vendo.
Fazia muito
frio ali e a criança estava tremendo, batendo os dentes num ritmo frenético.
Dhagar se afastou da irmã e se aproximou dos dois. A mulher levou um susto ao uma
guerreira tão alta. Abaixou-se, colocou a mão dentro da bolsa que carregava,
retirou o cobertor que se cobrira na noite anterior e deu para a mãe do menino.
Levantou novamente e bagunçou o cabelo do pequenino, um gesto quase afetivo em
meio tanta desgraça, virou suas costas e andou na direção da irmã.
- O-Obrigada.
– respondeu uma voz feminina. Súbito, antes que pudesse responder, uma sirene
tocou. O barulho era tão alto que Dhagar não conseguia ouvir a própria voz
quando perguntou o que diabos estava acontecendo. Não demorou muito até um
grupo de guardas, parecidos com aquele que estava do lado de fora, cercassem os
dois homens forasteiros. Thorque puxou seu machado afiado. Ficou em posição
ofensiva. Dhagar retirou sua espada e ficou de costas para sua semelhante.
Havia quase
cinquenta guardas ali e eles eram de todas as raças possíveis. Anões, elfos,
gnomos, homens, eladrins e toda sorte de feras. Carregavam espadas, lanças,
maças, clavas, escudos e muitos outros objetos que utilizariam para matá-las. Dhagar
e Thorque sorriram. Antes que qualquer cabeça pudesse rolar pelo chão podre de
Rhodavir, uma figura alta e grotesca surgiu sem ser convidada para a festa de
arromba que logo aconteceria. O sujeito era extremamente alto e sua raça era
humana. As duas guerreiras eram maiores que dois metros de estatura, mas esse
cara era muito maior. Parecia uma porta dessas catedrais malucas que tem por
todo o reino. Tal como os guardas, esse humano também era um morto vivo, mas
vestia-se com elegância, trajando um manto real púrpura com alguns detalhes e
símbolos pintados de dourado no local. Os olhos eram todos negros e já não
possuía nariz. Faltavam vários dentes na boca, o que lhe dava um ar engraçado. As
botas eram de couro fino. Uma coroa de ouro que pairava em sua cabeça
apodrecida.
- Então – o
homem-esqueleto-morto-estranho-e-feioso, começou a falar. As palavras saíam de
sua boca, mas ela não mexia – Vocês vêm em meu domínio, matam um soldado real e
ainda dão para aquela criança miserável um manto para se cobrir... Quem acham
que são para fazerem o que quiserem aqui? Essa é minha cidade, minha, não
pensem que deixarei isso impu...
- Sua cidade?!
– indagou Thorque falando mais alto que o cadáver-vivo – Você rouba a cidade
desse povo, os deixa na miséria e ainda tem coragem de chamar de SUA CIDADE?
- Acho que deveria
respeitar vossa alteza! – Dhagar respondeu ao irmão em tom grave, como se
quisesse censurá-lo por algo de errado.
- Está louca?
Vai defender essa criatura horrenda?
- Olha o
respeito. Não está vendo? É o Rei. – Dhagar apontou a longa espada para a irmã
– Não posso deixar que fale assim com ele!
Sem motivo
algum, colocaram-se uma contra a outra. Uma mudança brusca e estranha. Dhagar
apontava sua espada mirando o rosto da irmã, que por sua vez, segurava o
machado com muita força. A tensão era tanta, que algumas gotas de suor desciam
do rosto delas. Os guardas abaixaram suas armas e abriram espaço para seu líder
passar. O Rei morto-vivo se posicionou atrás de Dhagar e exibia um sorriso
estranho – uma mistura de tristeza, com felicidade ou raiva, sei lá. Algo
assim.
- Muito bem,
minha querida bárbara. – a criatura cadavérica começou seu discurso novamente –
Mate sua irmã. Não há nada mais belo nesse mundo que isso. Mate-a e deixarei
que se una à minha horda.
- Como quiser,
vossa majestade. – Dhagar urrou, virou o tronco girando a espada, num corte
horizontal. A espada executou com perfeição o movimento, cortando o morto-vivo
pela pelve, separando seu tronco dos membros inferiores. Os restos mortais
caíram para lados opostos e o sangue negro jorrou.
Os guardas se
entreolharam assustados. Nunca haviam visto vossa majestade tombar em batalha –
na verdade, nunca viram o Rei entrar em batalha alguma. Dhagar girou a espada
no ar, dispersando o sangue podre que estava na espada. Thorque deu um tapa na
nuca da irmã e ambas gargalharam. Abaixaram a guarda isso deu a oportunidade de
um elfo morto-vivo atacá-las por trás. Segurava uma lança. Desferiu o golpe
visando à nuca da bárbara mais nova, mas encontrou apenas o vento e o chão,
quando este mesmo braço caiu decepado. Não demorou muito até a cabeça do elfo
fazer companhia ao braço, após o corpo cair, inerte.
Thorque havia
se defendido de forma majestosa, e isso deixou os guardas ainda mais
perturbados, – mais perturbados do que estavam antes, já que seu rei estava
caído partido ao meio – porém, mesmo estando desestabilizados, todos resolveram
atacar ao mesmo tempo. Um emaranhado de escudos, espadas e outras armas
enferrujadas.
Dhagar soltou
uma gargalhada mortal e cortou os dois primeiros humanos-mortos que vinham pela
frente. Os elfos se agruparam e atacavam em turno Thorque – os filhos da mãe,
mesmo mortos, ainda eram exímios estrategistas – que golpeava de cima para
baixo, horizontalmente, de baixo para cima e esquivava com maestria. Dhagar
jogou a espada para cima e cruzou um chute no rosto dos anões que caíram no
chão, com os pescoços quebrados. Pegou o machado de Thorque que caiu em suas
mãos como magia e desferiu outros cortes, esmigalhando os escudos dos orcs que
se aproximavam.
Thorque
esmurrou a têmpora do eladrin careca que perdeu o equilíbrio e caiu em cima de
dois gnomos. Segurou um elfo pelo pescoço e o torceu. A espada de Dhagar caiu fixando-se
no chão, em pé e orgulhosa. Ela segurou sua bainha e a retirou sem muitos
problemas, girando seu tronco e deixando que o peso do próprio corpo a
conduzisse para outros golpes.
Os
mortos-vivos tombavam um após os outros em meio a tanta maestria dos movimentos
das guerreiras. Enquanto alguns guardas, que estavam mais atrás, sentiam medo e
incerteza ao adentrarem no circulo sangrento, Dhagar e Thorque urravam e
gargalhavam a cada golpe bem delineado. Um dos mortos-vivos chegou a pensar que
estavam apenas brincando e distribuindo golpes aleatórios. Uma brincadeira
voraz com uma precisão marcial incrível.
Thorque arremessou
a espada em direção a uma fileira de guardas, atravessando-os. Segurou um
humano-morto em sua frente e retirou sua espada, como se fosse um escudo. O
guarda não conseguiu se defender de seus próprios companheiros, que estocaram
várias e várias vezes com a ponta de suas espadas enferrujadas. A irmã bárbara
mais nova arremessou o escudo morto em cima de um grupo de anões. Pulou em cima
do corpo e esmagou a cabeça de dois deles, triturando o crânio. Dhagar segurava
dois manguais e os girava, estourando crânios com simples movimentos do tronco.
Não demorou muito até quase todos os guardas estarem no chão. Alguns
acompanhavam à distância.
- Podemos
entender que vocês se renderam ou ainda querem experimentar o poder de sentir
medo da morte?
- De novo, né.
Estão mortos desde o começo. – riram muito. Longe da batalha, os cidadãos
observavam com cautela tudo o que acontecia, sentindo medo mais do que nunca.
Uma mãe segurava a criança no colo, estando em prantos juntamente com seu bebê.
Outro homem tentava proteger o pequeno bezerro que tinha. Outras famílias se
escondiam em porões, talvez achando que pudessem sair ilesos de toda aquela
chacina. Quem seriam aquelas mulheres que estavam matando todos os guardas de
vossa majestade? Libertadores ou apenas outros ditadores?
Os guardas não
avançavam de jeito algum, mas também não soltavam suas armas e escudos. Queriam
lutar, mas não conseguiam encontrar qualquer tipo de estratégia para vencer seu
inimigo. Um humano pequeno que já não possuía músculos no rosto, estando apenas
com uma caveira amarelada e dentes caídos ou quebrados, tremia de medo. Olhou
para o chão e viu uma sombra grande aparecer atrás dele. Ao virar o rosto viu
seu Rei em pé, novamente.
- Olha quem
voltou à vida. – disse Dhagar com desprezo e sede de mais sangue – o Reizinho.
- É verdade,
havíamos esquecido que esse cara já estava morto antes. – Thorque complementou.
- Que vacilo o
nosso. – mais risadas.
- Eu estava
apenas descansando, suas miseráveis. Fiquei observando seus movimentos e
esperando para lhes entregar ao destino negro que as esperam!
O Rei das
catacumbas murmurou algumas palavras baixinho e em seguida surgiu um cajado caindo
em suas as mãos. Segurou com força e o apontou para cima. O céu, que outrora
estava coberto por nuvens, se escureceu ainda mais, fazendo com que a temperatura
caísse rapidamente. Gotas de água começaram a cair. Não apenas isso. Trovões e
descargas elétricas desciam com vontade, acertando todas as casas ao seu redor.
Pessoas corriam para todos os lados, desesperadas para salvarem suas vidas, Um
raio acertou a cabeça de uma mulher em cheio, transformando-a em uma gosma
preta e vermelha.
Dhagar e
Thorque estavam paradas, esperando que o Rei fizesse algum ataque, mas, na
realidade, estava longe apenas invocando feitiços de raio. Thorque suspirou, parecendo
estar cansada ou entediada. No mesmo momento, um dos trovões desceu sobre suas
cabeças, num ímpeto impossível de ser previsto.
- HAHAHAHA. –
o Rei dos Mortos-Vivos começou a rir – E esse é o fim dessas guerreiras que
ousaram guerrear contra mim. O maior dos soberanos. O mais poderoso ser sobre
toda... - Súbito, recebeu um impacto muito forte em seu ombro e tombou no chão,
caindo de maneira abrupta e sem chance de resistência. Não compreendeu nada,
até olhar de volta ao local onde acabara de cair o raio e lá estava algo que
não se via todos os dias.
Havia uma mulher
e não parecia ser nenhum das duas. Sua estatura era mais baixa que a das irmãs,
vestia uma manta negra, deixando os braços amostra. Segurava um cajado negro
que apontava em direção ao rei morto-vivo. Um enorme cabelo branco descia até o
chão. Seus olhos também eram brancos e parecia que estavam brilhando, emanando
algum tipo de energia. A figura emanava uma aura de perigo, como se qualquer
momento pudesse destruir o mundo inteiro. O rei se colocou de pé, sentindo que
deixara algo cair no chão. O braço. Tentou invocar algum feitiço para
restauração, não dando certo. Uma sensação estranha começou a percorrer seu
corpo. A visão ficou turva e caiu novamente, levando o outro braço até a
ferida. Estava confuso, nunca sentira tal coisa.
Gritou ao ver
o sangue escarlate jorrar de seu corpo. Não havia se dado conta que a cor de
sua pele retornara ao normal. Sentiu algo pular em seu peito. O coração estava
batendo. O Rei, que outrora estava morto e vivo ao mesmo tempo, agora vivia de
verdade. Seus poderes arcanos de necromancia o haviam abandonado. Era apenas um
humano alto, comum e assustado.
- Quem... –
começou a falar. Sua voz não parecia mais cadavérica – Quem são vocês para que
tragam um morto à vida... Ordeno que me digam a verdade... – a boca se encheu
do acre sabor de seu próprio sangue, fazendo com que vomitasse.
- A verdade? –
disse a mulher de cabelos brancos, emanando luz de quase todo seu corpo – Tudo
bem. A verdade é que você não ordena nada. Morra em sua própria ignorância e
suma da vista dos deuses. – outra energia saiu de seu cajado indo rapidamente
em sua direção.
- deusas... –
fora a única palavra que conseguira pronunciar. O raio cobriu todo o corpo do
homem que evaporou no mesmo instante.
A mulher de
olhos e cabelos brancos observou toda a destruição ao seu redor. Casas
destruídas. Fogo por todo local. A vida parecia abandonar Rhodavir. Ergueu seu
cajado acima da cabeça e girou com força no ar. O fogo desapareceu. As nuvens
negras sumiram, dando lugar para o céu azul. Os guardas mortos e toda a sujeira
causada pela guerra também haviam sumido.
As pessoas
começaram a sair de suas casas e esconderijos. Encontraram Dhagar e Thorque
sentadas no local onde estavam guerreando antes. Cada uma comia uma maçã.
- E então. –
disse Dhagar – Onde está nossa recompensa? – sorriu.
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